Você toparia essa aventura sem uma câmera fotográfica?
E se não lhe fosse permitido fotografar, você continuaria interessado em vir conosco nessa experiência?
Como você se lembraria dos momentos mais especiais de sua vida se você não pudesse fotografá-los? Como você contaria para seus amigos e familiares o que viveu? Você continuaria tendo momentos mágicos e inesquecíveis ou pararia no tempo e espaço?
Esses são questionamentos que surgiram em reunião com lideranças das etnias Fulni-ô, Krahô, Yawalapiti e Kayapó que participam do evento para pensarmos no tema da décima edição da Aldeia Multiétnica.
Nesses nove anos em que realizamos a Aldeia Multiétnica, passaram por aqui fotógrafos e cineastas brilhantes que registraram momentos únicos e que tem para nós valor imensurável, mas ao mesmo tempo também percebemos que na medida com que as facilidades do mundo conectado aumentavam, o encontro com os povos indígenas, oportunizado pela Aldeia Multiétnica, passava mais uma vez a ser mediado por telas e muitos se perdiam detrás de suas câmeras fotográficas, celulares e equipamentos, sem aproveitar a grande chance de conversar, ouvir, aprender e relacionar-se com esses povos ávidos por se fazerem entender.
O que para muita gente é uma grande oportunidade de conectar-se com um passado recente e de marcas fortes na vida e na história de todos os brasileiros, para outros o encontro tornou-se só mais um lugar e espaço para um bom registro que pode ou não lhe render boas curtidas nas redes sociais. Toda essa nova relação com a imagem e com as redes demanda de nós responsabilidade para não profanarmos a alma daqueles que tiveram em muitos casos sua cultura devastada na “construção” deste país e que se colocam neste projeto como facilitadores para que os brasileiros possam se reconhecer e compreender um pouquinho sobre a história do país.
Nunca tivemos problemas com fotógrafos, cineastas ou comunicadores que se interessavam em participar da Aldeia Multiétnica, mas não custa nada trazer a público algumas questões referente a comunicação e a utilização da imagem desses povos que você, comunicador ou não, precisa conhecer:
1. Vivemos em um país que abriga cerca de 246 povos indígenas diferentes e que falam cerca de 150 línguas. Povos completamente diferentes um do outro e que precisam de um conjunto de direitos que lhes garanta a sobrevivência enquanto povos culturalmente diferenciados.
2. Para que esses direitos fossem alcançados, foi preciso mostrar a cara dos povos indígenas ao Brasil. Esse processo foi fundamental para que o Estado brasileiro reconhecesse, a partir da Constituição de 88, que o Brasil é um país pluriétnico, que abriga um mosaico de micro-sociedades às quais era necessário garantir o direito à terra e à cultura próprias.
3. Para que isso acontecesse muitas pessoas não indígenas assumiram o papel de apresentar ao Brasil os povos indígenas do país fotografando, filmando, catalogando e documentando seus costumes, culturas e histórias. Enfim, expondo a sua cultura e a sua imagem, bem como as ameaças que pairam sobre eles.
4. Depois da consolidação da Constituição de 88, a cultura indígena foi sendo absorvida pelos grandes veículos de comunicação e em muitos momentos desvirtuada. Informações errôneas e superficiais foram criando uma noção muito diferente do que é ser indígena no Brasil e isso tudo interfere e interferiu diretamente na vida dessas pessoas.
Para terem seus direitos resguardados, se tratando de comunicação, foi criada uma legislação que garante o direito autoral e o direito de imagem dos povos indígenas. Essa legislação presa pela autonomia desses povos e combate a utilização indevida e comercial de sua imagem. Embora a medida tenha inúmeras dificuldades para ser de fato inserida e fiscalizada, a lei existe e precisa ser conhecida por todos.
Este ano a décima edição da Aldeia Multiétnica celebrará a sabedoria dos povos indígenas e suas produções. Temos hoje uma extensa produção literária, fotográfica e cinematográfica produzida pelos povos indígenas brasileiros e é a partir desses olhares que teremos uma nova visão sobre o Brasil, a cultura e os caminhos para a construção de uma nação forte, democrática e plural.
Este ano, mais do que nos outros, temos o objetivo de sensibilizar não indígenas para as causas desses povos. Causas urgentes e que precisam ser nesse momento de instabilidade política compreendidas verdadeiramente. Pelos anos muitas perguntas foram levantadas e hoje responderemos a partir da transcrição das prosas que foram escutadas em muitas das atividades incluídas na programação do evento.
1. “Porque nos aproximarmos desses povos se o ideal seria que eles se mantivessem isolados?”
Para seu Getúlio, uma das lideranças da etnia Krahô, localizada no Tocantins e que participa da Aldeia Multiétnica desde sua fundação, a vida dos povos indígenas se eles continuassem isolados em seus territórios, “seria uma maravilha, filha, mas o que acontece é que não estamos. Já tomaram nossas terras, destruíram nossas matas, envenenaram nosso solo, roubaram muitas das nossas meninas, deram pinga pra nós, sujaram nossos rios. A terra quando é envenenada nunca mais é a mesma, só depois de matar a doença e começar tudo do zero. Nós somos como a terra. Tudo mudou pro índio. É por isso que a gente não pode desprezar seu ninguém que queira mesmo de bom coração ajudar. ”
A Cacica da etnia Kariri Xocó, Ivanice Tanoné, da região de Alagoas e que hoje vive no Santuário dos Pajés em Brasília, explicou que depois de tanta desapropriação e interferência nos costumes dos povos indígenas, hoje muitas etnias já não conseguem viver apenas do que a floresta os dá e que “o dinheiro hoje é uma maldição”, mas garante a eles sobrevivência. “As nossas florestas já se foram, os nossos rios já não abrigam a quantidade e qualidade de peixes do passado e a doença do homem branco já nos infectou. Não temos como combatê-las apenas com nossas medicinas”, explica.
No polígono das secas, em Pernambuco, a etnia Fulni-ô teve sua aldeia invadida e viu nascer uma cidade dentro de seu território. Foram assim perdendo suas terras e colecionando violações de direitos. Muitos indígenas foram inseridos ao mercado de trabalho do homem branco, catequizados e evangelizados para que pudessem assim garantir o sustento da família, que antes era extraído da floresta e dos rios, mas que hoje é preciso ser buscada em mercados e mercearias, tamanha foi a destruição do território e dos costumes desse povo. Towê, uma das lideranças da etnia Fulni-ô, explica que antes do “descobridor” tudo era como deveria ser, mas agora o caminho reverso é longo, pesado e em muitos casos pode parecer impossível, “mas o grande espírito sabe das coisas e sabe que seus filhos não desaparecerão”.
Todas essas observações fazem parte de uma avaliação ampla sobre a proposta da Aldeia Multiétnica. Este ano comemoramos dez anos de realização. Momento oportuno para aprofundar as discussões sobre a proposta do evento. O que lhe faz ter vontade de participar de um evento como este?
Nós temos certeza que não são só as fotos que você publicará na internet. Acreditamos que uma foto comunica muito e que podem ser, até certo ponto, importantes para a promoção e representação dos povos indígenas, mas queremos sobretudo que os visitantes compreendam as dificuldades e importância da luta indígena. Não realizamos este evento por acaso. Queremos encontrar pessoas que questionem suas histórias e ao fim da atividade levem na mala, além dos artesanatos bonitos, o compromentimento com a sobrevivência desses povos.
Você está pronto para isso?
FOTO: Marcelo Scaranari