Um Tributo a Marcos Fayad
Antes do surgimento da televisão, o canal de entretenimento para os moradores do interior era o circo. Os espetáculos no picadeiro, mesmo debaixo de uma lona fria e no desconforto das arquibancadas, eram concorridos e disputados pela população. Através do circo, as duplas caipiras divulgavam suas canções, os palhaços alegravam a garotada e atores mambembes apresentavam divertidas peças teatrais.
A chegada do circo, em qualquer cidade, era um acontecimento. Os visitantes desfilavam os carroções pelos bairros e anunciavam, de forma barulhenta, a programação dos espetáculos, aguçando a curiosidade dos moradores. Diversas companhias de circo mambembe se apresentaram em Catalão onde existia, até mesmo, um largo terreno reservado para suas instalações.
Foi esse mágico ambiente que encantou o menino Marcos Fayad, no final da década de 1950, despertando sua vocação para o teatro. Desde adolescente, por influência do mundo circense, começou a observar as coisas de modo diferenciado. Onde todos viam simplicidade e amadorismo, ele via sofisticação e magia. Onde todos viam mera representação da realidade no picadeiro, ele presenciava o desenrolar de um sonho vagarosamente sendo exibido. Tanto que, acabou reconhecendo, mais tarde, a forte influência que recebera do circo, na época de criança: “Percebi que se podia contar, no palco, uma história de mentira como se fosse de verdade. É que, o teatro sempre foi um lugar onde se dizem verdades que são mentiras e é isto que encanta o público”.
Marcos Fayad nasceu em Catalão, em 1948, filho do comerciante Adib Elias e da jovem Ivete Fayad Elias. Sua mãe, de descendência árabe, era moderna, liberal e bem informada. Com ela, aprimorou o gosto pela leitura, aprendeu a conservar a mente sempre aberta e a rejeitar o tosco conservadorismo.
Fez seus primeiros estudos em Catalão, procurando se inteirar e se especializar no mundo das artes. Chegou a ministrar aulas, quando jovem, como professor substituto no colégio Anchieta, onde montou um pequeno grupo de artes cênicas e um coral de alunos.
Em meados da década de 1960, Marcos Fayad mudou-se para o Rio de Janeiro onde ingressou no curso de psicologia na Puc. A partir de então, dedicou-se a viver intensamente voltado para as artes. Criou um teatro universitário na faculdade, em 1967, tornando-se ator e diretor, permanecendo no ambiente estudantil da Puc-RJ, por quase uma década.
Na época, encenou e dirigiu peças famosas como “Dois perdidos numa noite suja” e “Os pequenos burgueses”, viajando pelo Rio de Janeiro e Minas Gerais com seu grupo teatral. Aos poucos, foi sendo visto como referência e incentivador da arte cênica, fundando, em 1970, o Teatro Universitário de Petrópolis.
No início da década de 1980, Marcos Fayad fez uma breve incursão pelo universo do cinema e da televisão. Atuou em filmes de longa-metragem, como “O homem do pau-brasil”, de Joaquim Pedro de Andrade e “Terra de Deus” de Iberê Cavalcanti. Ao lado disso, participou de várias montagens de curtas com Paulo Guarnieri e Ítala Nandi.
Na televisão, foi diretor assistente da TV Globo, em 1983, responsável pela série “Quarta Nobre” por mais de um ano. Como ator, trabalhou nos seriados Carga Pesada, Malu Mulher, Romeu e Julieta e Plantão de Polícia.
Estava no auge da carreira. Havia conquistado os palcos teatrais brasileiros e fazia parte da elite global da televisão. Foi quando o governo de Goiás convidou o artista para atuar no seu estado natal. O governador Henrique Santillo não poupava esforços para formar uma equipe que colocasse Goiás no circuito da produção cultural do país.
O convite foi aceito porque Marcos Fayad nunca disfarçara o seu amor pela terra goiana. Adorava falar do sertão. Além das obras de Guimarães Rosa, havia se encantado com escritores clássicos do regionalismo brasileiro. Entre eles, Cassiano Ricardo, autor de “Martim Cererê”, Mário de Andrade e seu famoso “Macunaíma” e Oswald de Andrade no “Manifesto Antropofágico”.
Voltou para Goiás, em 1987, onde se dedicou a um trabalho intenso, já que mergulhava de cabeça em tudo o que fazia. Na época, existiam, em Goiânia, enorme caixas d’água de concreto, abandonadas pela Saneago, em um terreno baldio no setor sul. Juntamente com um grupo de técnicos e artistas, Marcos Fayad transformou os velhos recipientes de água em teatros de arena, criando um espaço cultural que batizou de “Martim Cererê”, em alusão à obra de Cassiano Ricardo.
Criou também um grupo teatral com o mesmo nome que encenou mais de quarenta montagens ao longo do tempo. A mais famosa, em termos regionais, foi a peça “Cabaré Goiano”, que esteve em cartaz por cinco anos, no teatro Pyguá, uma das arenas do Centro Cultural Martim Cererê.
Marcos Fayad viajou muito com o grupo teatral goiano, tanto pelo interior do estado, como em apresentações no eixo Rio-São Paulo. Em algumas vezes, cumpriu pequenas temporadas em Portugal e França. Esteve também em Catalão com o seu grupo teatral. Em 2009, nas comemorações dos 150 anos da cidade, apresentou o espetáculo “Theatro Musycal Profano” e posteriormente uma opera-bufa, sendo muito aplaudido pelos conterrâneos.
Na virada do século, atingiu a maturidade artística. Passou a criar monólogos, baseados em obras clássicas da literatura, voltando a se apresentar, com grande sucesso, no eixo Rio-São Paulo. Entre eles, o monólogo baseado na dramaturgia de Antonin Artaud e o espetáculo “Voar”, de Gil Perini. Logo a seguir, montou a peça “Cara de Bronze”, inspirada em conto de Guimarães Rosa, aplaudida nacionalmente pela sofisticação literária e, ao mesmo tempo, pela simplicidade na apresentação.
Em 2013, a mais respeitada crítica do teatro brasileiro, Bárbara Heliodora, registrou: “Marcos Fayad é um dos maiores nomes do teatro nacional. Tem uma atuação bonita e elegante, enquanto ao mesmo tempo deixa transparecer cada emoção, cada dor, cada alegria, cada manifestação de humor”.
Marcos Fayad faleceu em 2019, vitimado por um câncer, estando sepultado em Catalão. Dizem que não gostava de homenagens póstumas, que era temperamental e, quase sempre, polêmico. Realmente, nada pior do que lembranças piegas e endeusamento tardio.
Não tive a oportunidade de conhecer Marcos Fayad pessoalmente, mas compreendo sua postura. Geralmente o sentimentalismo barato tem ofuscado o brilho de muitos intelectuais. Por esta razão, elaborei o texto não como homenagem, mas como tributo. Uma obrigação que os catalanos têm de reconhecer a grande contribuição artística que ele deixou para Goiás e para o Brasil.
Ainda assim, desconfio que, se Marcos Fayad lesse o que escrevo agora sobre ele, daria sonoras gargalhadas, como era do seu feitio, ou então rasgaria o texto e atiraria fora os pedaços de papel, acompanhando o gesto de uma homérica bronca.
Não importa. Mais do que sua bem-sucedida carreira profissional, o que admiro neste conterrâneo é o seu pensamento.
Marcos Fayad demonstrou ser espontâneo, direto em suas respostas, cristalino como água mineral correndo em pedra lisa. Nunca tergiversava e tampouco fugia dos questionamentos.
Lamentou o enfraquecimento do teatro brasileiro, dizendo: “Há um movimento para se descobrir e dar chances a novos autores de teatro. No Brasil e no mundo estão montando os mesmos autores, sempre as mesmas obras, uma chatice. Na Europa é a mesma coisa. Parece que, depois do ‘boom’ da tevê, os autores se retraíram ou foram escrever para ela. Mas, é preciso se preparar, estudar dramaturgia, conhecer a história mundial do teatro para escrever bons textos. O que temos é teatro feito por e para entulhadores de palco”.
De certa feita, elogiou o grupo cênico que fundou, mas não poupou críticas aos diretores goianos: “A grande vantagem dos artistas da Cia Teatral Martim Cererê é poder trabalhar sem a proximidade da tevê. No eixo Rio-São Paulo, a mitologia que se criou, de que ator tem que fazer novelas para existir, gerou uma massa de bonecos infláveis que falam textos e que a imprensa televisiva chama de atores. Mas, em Goiás, tudo permanece como antes, como sempre foi: muita estrela pra pouco céu. O que tenho visto é que, quem arrisca a dirigir, não passa de Nelson Rodrigues, um ou outro autor manjadissimo, com atores despreparados que ainda pensam que interpretar é gritar. Como exijo leitura, informação e muito, muito trabalho, tenho fama de ser um diretor tirano. O teatro acomodado que se faz aqui não me interessa e parece que ao público também não”.
Ainda, não poupou críticas ao público que comparece aos teatros: “Aqueles que só vão ao teatro para se distrair com bobagens vindas de fora, como a praga das celebridades construídas pela tevê, ou com essas superficialidades e futilidades que chamam de teatro, aconselho a não irem assistir aos espetáculos que criamos. Vão se decepcionar porque não me interesso em apenas fazer o espectador rir riso fácil, detesto idiotices levadas ao espaço sagrado do palco… sou exigente, muito pra mim é pouco, tudo pra mim não basta”.
Sobre o que falavam dele, Marcos Fayad foi enfático: “Tenho fama de brigão aqui em Goiás. Gosto dela. Particularmente, eu brigo e exijo ser tratado com respeito, porque tenho consciência de que o projeto Goiás, com o meu trabalho, caminha muito melhor que muitos políticos e empresários por aí. Afinal, não roubo, não corrompo, não participo de maracutaias, não me vendo, não tenho emprego público e nem privado. Vivo da arte e somente da arte. Com ela transmito uma imagem do meu estado, positiva e moderna”.
Sobre os sonhos profissionais, Marcos Fayad afirmou: “Minha grande utopia é descentralizar a cultura brasileira da ditadura do eixo Rio-São Paulo. Sei que os melhores artistas não estão na tevê ou apenas nas grandes cidades e sim, nas médias e pequenas, onde têm acesso aos bens culturais e, ao mesmo tempo, mantem a simplicidade que produz a verdadeira arte, associada à vida cotidiana. Teatro convencional e tevê foram se tornando sinônimos: um virou extensão do outro e, ambos, mera distração. Nenhuma renovação virá daí”.
Sobre a sexualidade humana, de certa feita, esclareceu: “Sou um protomutante. Portanto, sou homem e mulher e quero desfrutar das qualidades e defeitos comuns aos dois. Sou um cara apaixonado, lúcido e, ao mesmo tempo, agressivo e doce, alegre e triste, suave e rascante, novo e velho. Nunca sou uma coisa ou outra. Sou sempre uma coisa e outra. Esta é a meta de um protomutante. Quem quiser saber o que é um protomutante deve ler Wilhelm Reich”.
Realmente Marcos Fayad era uma pessoa de cultura invejável. Um catalano que brilhou no cenário brasileiro e nos ensinou, na prática, que a maior sofisticação é a simplicidade.
O catalano Marcos Fayad em momento de lazer
O ator Marcos Fayad em cena
O diretor de teatro Marcos Fayad
Luís Estevam