Um Rosário de muitas histórias e olhares Por: Cairo Mohamad Ibrahim Katrib

Histórias são contadas, numa narrativa de tempos

e sentidos. Fios que ajudam a tecer e moldar nossa

“imagem e semelhança”. Nossas diferenças, marcas,

representações e intricadas relações. As festas

marcam o tempo. O eco das vozes arrastam pessoas,

temas e lugares recortados na moldura da festa.

Diligência de busca e procura. “Relembramentos” da

vida. De vidas. Entre a dureza do presente e o sonho

de um futuro melhor, as festas ajudam a entender os

arranjos do sentir, do viver e do agir. 1

 

A história da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário se entrelaça a do município de Catalão-GO que se confunde com a da própria Irmandade. Fundada por volta de 1860, a história da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário se amalgama com a do município se firmando sob o comando dos brancos que se juntaram aos negros como coparticipantes de um “pagamento de promessa”. E a partir daí essa Irmandade passa a ser um dos agentes fundamentais na organização da festa e, consequentemente, da fundação de vários ternos de Congos e Moçambiques.

Por volta dos idos de 1880 a 1900 eram poucos os dançadores, que se dividiam em dois grupos (Moçambiques e Congos). Esses dançadores eram negros, trabalhadores nas fazendas da região, que durante os dias de louvor a Nossa Senhora do Rosário, com o consentimento de seus senhores, se uniam em grupos, vigiados de longe pelos fazendeiros para juntos cantarem e louvarem a Virgem do Rosário. Os negros mais velhos e experientes se juntavam formando o terno de Moçambiques, geralmente credenciados pela Irmandade do Rosário, usando roupas brancas bem rodadas, enfeitadas com tiras bordadas cujos instrumentos de percussão eram chocalhos amarrados ao tornozelo.

A permissão para se dançar no terno de Moçambique deveria ser analisada pelos membros mais velhos do grupo que, juntos, formavam um conselho para aprovar a entrada dos novos integrantes, após analisar a postura moral e religiosa do dançador, pois segundo a lenda, foram eles que acharam Nossa Senhora do Rosário que os acompanhou. No terno de Congo tínhamos os negros mais jovens vestidos de branco com fita vermelha amarrada na cintura. Era composto por negros que estavam se iniciando na Irmandade.

img_4074

Até por volta de 1900 a Congada de Catalão contou com a presença desses dois grupos durante a festa, que não tinha as dimensões atuais. Não existia a presença da parte comercial da festa, que  começaram a existir por volta da década de 1940. Antes disso, toda a festa se resumia a parte religiosa e a realização de uma inexpressiva quermesse, onde todas as despesas corriam por conta dos festeiros que contavam com a doação de alimentos e outros donativos para a realização dos festejos. Entretanto, as comemorações eram celebradas com muita reza e fartura. Matavam-se inúmeros porcos, vacas e galinhas, tachos e tachos de comidas eram providenciados para alimentar os dançadores e demais participantes da festa.

Os dias de festa eram marcados pela alvorada, entrega da coroa, terços e procissões e desfile dos ternos de Congo e Moçambique pelas ruas da cidade. A alvorada acontecia ao som de foguetes e muito batuque principalmente quando os ternos ou grupos de dançadores se reuniam no largo da Velha Matriz, local onde aconteceu a festa por vários anos. Ali, os fazendeiros da época se mostravam, estabeleciam vínculos de sociabilidade com a população presente, se transformando no atrativo das comemorações. Aquele era mais um momento de projeção social, em que apareciam como pessoas aquinhoadas da cidade e incentivadoras da festa.  Se de um lado tínhamos a exposição social e econômica, cuja população católica demonstrava sua fé ao catolicismo; de outro, os negros tinham naquele momento a oportunidade de transmutar sua fé e religiosidade ao culto ancestral e as suas divindades, travestidas de santos católicos, podendo, a seu modo, fazer as devidas reverências e evocações.

img_4079

Essa transmutação de interesses ocorria nos nove ou dez dias de novena. Após as rezas no interior da Velha Matriz a população se reunia do lado externo da igreja para confraternizar e saborear quitutes, doces e outras guloseimas numa pequena quermesse organizada no local, espaço esse de acesso restrito, uma vez que pouquíssimos eram os negros que participavam, inclusive, das rezas celebradas no interior da igreja, sempre vigiadas pelos olhos de seus senhores.

Na visão de Maria das Dores Campos nos dias de festa, a devoção e a fé a Santa do Rosário reunia, indistintamente negros, brancos, fazendeiros e população em geral. Porém, nota-se em suas descrições a imposição do catolicismo aos negros em todos os rituais litúrgicos. Este momento de união de brancos e negros representava, aos olhos dos senhores e de grande parte da população local, a aceitação, o perdão e a compaixão do branco frente aos desvios religiosos dos negros. A memorialista descreve esses momentos, seja o da missa, da alvorada como o da reza do terço ou do batuque dos negros como uma participação piedosa de toda a população participante. Segundo ela ainda que durante qualquer momento litúrgico em que dançadores e população se reuniam para celebrar Nossa Senhora do Rosário, na presença de um representante oficial da igreja católica, silenciavam os batidos das caixas para uma prece contrita e cheia de fé. E durante a comunhão eucarística, brancos e negros, todos em fila, reverentes iam receber Jesus na eucaristia, abrindo seus corações e suplicantes imploravam ao menino Deus e a santíssima Virgem do Rosário, solução para muitos e difíceis problemas2.

Os problemas dos brancos, principalmente dos mais aquinhoados, podiam ser resolvidos ali mesmo, pois o que muitos buscavam era o reconhecimento social algumas vezes associado ao “pagamento de promessa” como forma de quitar com o divino suas dividas espirituais.3 Enquanto isso, os pedidos dos negros eram pela sua sobrevivência, lutando contra a submissão ao branco e a humilhação constante pelas quais passavam ao mesmo tempo em que rememorando o passado, traziam à tona sua religiosidade presentificada pela transmutação sincrética do culto aos orixás.

O sujeito histórico principal da festa era, para Campos, os fazendeiros, responsáveis pelo brilhantismo do acontecimento. Mas não podemos esquecer que, incentivar os negros à prática da Congada, fornecendo-lhes roupas, emprestando-lhes jóias e permitindo que se afastassem do trabalho nas fazendas para cultuar Nossa Senhora, não acontecia tão somente por devoção do fazendeiro, era uma forma de ganhar a atenção dos moradores da cidade, dos outros fazendeiros e seus familiares que se deslocavam da zona rural para a cidade nos dias de festa, construindo uma imagem de homem poderoso e religioso. Por detrás dessas qualidades escondia-se o papel político que angariava a confiança da população, sendo reconhecido por outros políticos, projetando-os por tais caminhos.

Enquanto os foguetes pipocavam o céu, colorindo-o com fagulhas reluzentes, o negro lavava com suor seus pedidos e súplicas por melhores dias, e em cada batuque expressava na força da batida das caixas e no seu semblante pensativo, a expressão dos sofrimentos de sua labuta diária. A persistência e a vontade de conquistar de fato a liberdade impulsionava a vida e fé dos negros dançadores.

A submissão do negro era evidente; a escravidão precisava ter um fim não só oficialmente, registrada nos documentos, e, talvez, a liberdade começasse pela expressão da sua cultura. Nesse sentido o batuque das caixas, as vozes desencontradas, os pulos e requebros desordenados não se resumiam apenas a uma cultura deturpada, mais que isso eram essas práticas e representações que faziam do negro sujeitos fortes, persistentes que conseguiram, mesmo impedidos de retornarem a suas origens, dar-lhes continuidade, ao seu modo, num ambiente hostil e controlado pelo branco. Assim, constituiu-se a cultura afro-brasileira como parte inexorável da nossa história, da nossa sociedade.

A visão festiva descrita pela memorialista induz à percepção que vários momentos festivo-devocionais existentes nas celebrações em louvor a Nossa Senhora do Rosário existentes hoje são tradições advindas de séculos passados. O café da manhã, os almoços oferecidos aos ternos de congo que acontecem ainda hoje e que são de responsabilidade dos festeiros aconteciam anteriormente, pois o festeiro era responsável direto pela festa e pela alimentação dos dançadores, contando com os donativos de fazendeiros e da população em geral. Era responsável também pela organização da parte devocional como a reza do terço, missas, novena, supervisionados pelo padre responsável pela cidade.

O levantamento do mastro era uma forma de evidenciar que, daquele momento em diante em que a bandeira da Santa do Rosário fosse erguida, toda a cidade estaria sobre a proteção direta dela, marcando oficialmente as comemorações. As procissões realizadas até pouco tempo com o uso das lamparinas multicoloridas, feitas de papel de seda, que iluminam as ruas da cidade durante a passagem do cortejo é uma prática bastante antiga  preservada por vários anos na festa, em especial pela família Primo quando responsável pela bandeira da festa na função de mordomos. Essa prática foi adaptada da tradição europeia católica de iluminar os caminhos por onde os cortejos de devoção aos santos católicos passassem. Durante esses cortejos aconteciam como hoje acontecem as diferentes formas de expressão de fé da população. Uns acompanhavam a procissão descalças; outros vestiam seus filhos pequenos de anjos e as mocinhas de noivas, entre outras formas de cumprir o voto firmado com a Santa, práticas estas presentes nos dias atuais na festa do Rosário em Catalão. dsc_4404Os memorialistas catalanos por meio de seus registros nos dão pistas da existência da festa no município desde 1860 até praticamente 1900, havendo um interregno de 30 a 40 anos, cujo silêncio é explicado por Campos: […] aconteceu que esta festa foi proibida, pelos frades Franciscanos quando para cá vieram, substituindo os padres agostinianos. O povo inconformado fazia a celebração sem a presença do missionário, o que causava grande descontentamento, apagando o entusiasmo e brilho dos festejos. Resolveram os pretos reorganizar sua irmandade, nomear uma diretoria, na qual participavam brancos e pretos4.

Por esse motivo à festa se desintegrou em torno da igreja, polvilhando-se em várias comemorações isoladas pelas fazendas do município. Por volta de 1900 até 1930, restaram alguns negros na cidade que também cultuavam Nossa Senhora pelas suas ruas, do lado de fora da Igreja.  Outro fator que contribuiu para a desagregação da festa foi à permuta de igrejas entre Irmandade e igreja Católica, que para muitos membros da Irmandade foi apenas verbal, no entanto, registrada em Cartório por Issac Lange da Cunha em 1876.5

O senhor Edson Arruda, sempre que falava dos festejos em Catalão, contava que o quintal da casa de seus pais foi palco da realização de inúmeras festas em homenagem a Nossa Senhora do Rosário. Quando o espaço não comportava os dançadores e devotos a rua era o palco da devoção e dos festejos em louvor a Nossa Senhora do Rosário e, aconteciam várias festas para além daquela realizada pelas pessoas de posse da cidade. Era várias festividades dentro de uma festa dita oficial, mas que não valorizava as pertenças identitárias das famílias congadeiras da cidade. Por isso, muitas delas criavam suas próprias festividades.

geraldo-prego-1

FOTO: Geraldo Prego, pai do senhor Edson Arruda.

 

Fotografias antigas da comemoração na cidade demonstram que, por volta de 1907, existia sim um pipocar de festejos pela cidade sendo uma das áreas de concentração de inúmeras festas uma área livre na avenida João XXIII, onde depois foi construído o mercado municipal da cidade e hoje é um centro comercial.  Com tantas festas acontecendo ao mesmo tempo, alguns dançadores mais antigos afirmam ter existido no início das celebrações em homenagem a Santa na cidade, por volta da década de 1930  três coroas – símbolo da festa, que é repassada pelo festeiro atual ao do próximo ano, o que evidencia que até esse período três festas poderiam acontecer no município em datas distintas. Assim, os registros oficiais da festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário se reorganiza a partir do ano de 1936.

 

ana-rosa-da-jesus-e-jose-rosa-pena

FOTO: Ana Rosa da Jesus e José Rosa Pena (Festeiros da 60ª Festa em Louvor a Nossa Senhora do Rosário em 1936)

igreja-do-rosario-atualmente-igreja-velha-matriz

FOTO: Igreja do Rosário. Depois Igreja Madre de Deos. Atualmente Igreja Velha Matriz.

ternos-mocambique-e-congos-em-1907

FOTO: Ternos Moçambique e Congo em 1907

1 PASSOS, Mauro. A festa na vida – Significados e Imagens. Petrópolis:Vozes, 2001. p.9-10.

2 CAMPOS, Maria das Dores. Festa em louvor a Nossa Senhora do Rosário de Catalão. Catalão: Biblioteca Pública Municipal. S/d ( material datilografado dos arquivos pessoais da memorialista doados à Fundação pelos familiares. Parte deste material se encontra no seu livro Catalão: Estudo histórico e geográfico).

3  Num dos folders da festa do ano de 2000, encontramos um texto redigido por Maria de Lourdes Netto Campos, irmã da Memorialista Maria das Dores Campos, que enfatiza o caso de uma promessa feita por Emerenciana Netto Carneiro Leão, que se bem sucedida fosse com a transferência de residência de Minas Gerias para o município de Catalão, esta ergueria uma igreja a Virgem do Rosário e a festejaria todos os anos.

4 CAMPOS, Maria das Dores. Catalão: estudo histórico e geográfico.

5 Segundo texto escrito por Maria de Lourdes Netto Campos em folder informativo, Emerenciana foi grande incentivadora da construção da igreja do Rosário na cidade, numa data anterior a 1860. Em 1863 com sua morte, doa parte de seus bens para as obras da Igreja do Rosário. O que queremos não é evidenciar que esta realmente foi responsável pela construção da igreja, mas sim nos dá pista da real existência de uma igreja na cidade, permutada no ano de 1876 conforme registro em Cartório.

nossa-senhora nossa-senhoraa