O dom de escrever

Mais que uma arte, escrever é um dom. Não é fácil transpor para o papel ideias e inspirações, muito menos torná-las compreensíveis para os leitores. Aprendemos uma Língua Portuguesa precária nas escolas, com pouca ênfase à redação e à compreensão de textos. Não se ensina a ler com a alma, não se ensina a amar as palavras, não se ensina a traduzir pensamentos. E o resultado é que a grande maioria mal consegue fazer o “ó” com o fundo do copo, quiçá produzir um parágrafo com começo, meio e fim.

Mesmo com anos de estudo, muita gente encontra dificuldade para escrever um simples bilhete, quanto mais um livro. Há pessoas com lindas inspirações, mas que não conseguem transpor os sentimentos para o texto. Para mim, escrever sempre foi algo que brotou das entranhas. Mal fui alfabetizada e já rabiscava meus escritos por aí. Com dez anos, venci um concurso de redação do principal jornal aqui da província e tive algumas poesias publicadas em outro. O papel sempre foi meu melhor amigo. Era (e é) ele que absorvia todos os meus pensamentos, sonhos, devaneios, alegrias, tristezas, angústias, mágoas, desejos.

Minhas gavetas sempre foram entulhadas de anotações, de frases, de poemas, de textos inteiros, de fragmentos, de calores, de palavras. E ainda continuam assim, repletas de papéis, pois, embora grande parte da minha produção esteja armazenada no computador, não vivo sem um caderninho na mão para anotar coisas que a princípio parecem sem nexo, mas que depois viram matéria-prima para meus escritos.

Apesar de escrever desde criancinha, relutei muito em tornar pública minha produção. Meu círculo me incentivava, mas eu pensava que aquilo era só meu e deveria continuar assim. Até que, num momento em que buscava revoluções profundas para minha vida, decidi me matricular numa oficina literária. Eu ansiava, basicamente, por liberdade. Queria soltar as amarras que me prendiam a pessoas e situações pesadas. E encontrei naquele grupo de escritores uma acolhida que me fez sair do casulo e virar borboleta.

Mergulhei em arquétipos, busquei no meu eu mais profundo minhas fomes, tranquei a timidez dentro do armário, visitei o abismo, virei minha vida de ponta-cabeça e, pela primeira vez, li em alto e bom som um texto meu – um que falava justamente sobre meu outro eu. A plateia arregalou os olhos, como que espantada com o que brotava de dentro daquela mulher de cabelos vermelhos e cara de burguesa. No final, aplausos me fizeram corar. Porém, me incentivaram a seguir em frente, tão em frente que pouco tempo depois eu venci o Mapa Cultural Paulista. E com um texto criado para uma oficina literária.

Por ter consciência do incentivo que uma boa oficina literária pode fornecer aos escritores de todas as idades e correntes, devorei com gosto a edição do caderno Mais, da Folha de S. Paulo de domingo. Há dicas valiosas para aqueles que desejam se aventurar pela literatura. A principal é ler. Ler muito, ler sempre, ler o que cair à mão, ler até bula de remédio. Ler sem medo, ler sem vergonha, ler com prazer.

Algumas sugestões são de cunho mais acadêmico; outras, mais voltadas à alma. O crítico Luís Augusto Fischer sentencia: “Leia como se fosse o psicanalista que ouve um paciente”. O professor Luiz Antonio de Assis Brasil indica (e eu assino embaixo): “Use em abundância o ponto final”. No entanto, foi o ótimoMarcelino Freire que deu os toques mais parecidos com o que sinto, vivo e penso. Ele recomenda:

PARA LER
1. Quanto mais um livro fizer mal, melhor.
2. Confortável precisa ser a cama, não a literatura.
3. Evitar lista dos mais vendidos.
4. Livro não é para ser entendido, é para ser sentido.
5. Desconfiar das dicas que te dão.

PARA ESCREVER
1. Cortar palavras.
2. Não usar gravata na hora de escrever.
3. Ouvir, mesmo que baixinho, a própria voz.
4. Desconfiar daquele texto que sua mãe gostou.
5. Ler e beber muito. E, no mais: viver.

Eu, particularmente, sigo o mestre Caio Fernando Abreu: “Se não gostar de ler, como vai gostar de escrever? Ou escreva então para destruir o texto, mas alimente-se. Fartamente. Depois vomite. Pra mim, e isso pode ser muito pessoal, escrever é enfiar um dedo na garganta. Depois, claro, você peneira essa gosma, amolda-a, transforma. Pode sair até uma flor. Mas o momento decisivo é o dedo na garganta.”

Escolha palavras, descubra novos significados, pontue, respire, ouça os sons das letras e enfie tudo goela abaixo. E depois vomite frases, poesias, prosas, surrealismos… Enfim, escreva o que sentir! Leia, releia, corte, leia, releia, e aos poucos faça o acabamento. Mas lembre-se: use a alma para lapidar tudo isso.

Lara Fidelis.