O BAILE por Paulo Pazz
Nos anos 80, Quem ia do bairro São José (rua do cemitério, popularmente apelidada) para o bairro Mãe de Deus, nas proximidades do Colégio Estadual João Netto de Campos, e vice-versa, forçosamente descia até próximo ao estádio do CRAC (Clube Recreativo e Atlético Catalano) e depois subia pela “Rua do Estadual”, ou atravessava o pequeno cerrado espremido entre a vintena de casas, escolhendo um dos inúmeros trieiros feitos pelas idas e vindas das pessoas de um bairro a outro.
Normalmente, esse trajeto só era feito durante o dia, visto que no percurso existia o único cemitério de Catalão… E as estórias de assombração eram muitas.
Eu morava na “Rua do Cemitério”. Era, na época, um preto robusto, no alto de meus vinte anos, solteiro e muito festeiro. Acabara de tomar banho e saí para um baile que iria acontecer logo abaixo do Colégio. O relógio automático de três coroas que suara muito para comprar rebrilhava em meu braço, anunciando que já estava próximo das vinte horas.
Desci pela rua e encaminhei-me para o baile, na certeza de que encontraria meus amigos e, quem sabe, uma companhia feminina para esquentar a cama naquela noite.
Cheguei ao local onde o baile já corria solto!
Sobre um tablado improvisado, Camilo, o único sanfoneiro da cidade, flexionava seus braços compridos, abrindo e fechando o fole da sanfona branca e encardida. Camilo faltava as duas orelhas (acho que já nascera abstraído delas). Os gozadores diziam que elas fugiram por não aguentarem ouvir o seu péssimo sanfonear. Daí que o apelidaram de Camilo Jabuti.
Pouco antes das vinte e três horas, um burburinho se acentuou na porta da casa em que o baile se desenrolava. A veraneio barulhenta da polícia parou no meio da rua de terra batida, levantando uma nuvem de poeira que cobriu a todos.
De dentro da viatura saltaram o Cabo Tacílio e o Soldado Pereira. No banco do motorista permaneceu o Soldado Pena, apelidado de Azeitona (apelido dado pelo populacho por ser ele um pretinho baixinho e barrigudo)
Cabo Tacílio já desceu distribuindo tapas em quem a sua mãozorra alcançava e gritando palavras de ordem:
_ Isparrama, cambada de gente à toa! Cêis num sabe que baile só pode até as dez, né? Intão vou alembrá ocêis!
Foi uma correria sem tamanho.
Camilo nem teve tempo de guardar a sanfona. Quando resolveu aluir do tablado, viu o cabo apontando no portão da casa, vindo em sua direção, segurando o cassetete com uma mão e batendo ele na palma da outra; a venta aberta. Então, desceu do tamborete alto, saltou por cima da mala-estojo da sanfona e chispou para o fundo do quintal.
Conhecedor de todos os trieiros, descambou rumo ao cerradinho. Na correria foi largando o pente flamengo, o cigarro Arizona e o espelhinho ovalado. Por último, uma das alças da sanfona arrebentou. Bem que Camilo tentou segurar, mas não conseguiu. A parte da sanfona que ficou solta se esticou e embaraçou no meio de suas pernas, quase o derrubando. Ao esticar, o fole emitiu um FOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM bem comprido em sol maior. Lá da moitinha rala em que me escondi, escutei aquela barulheira e fiquei com o pescoço grosso, segurando uma gargalhada que certamente me denunciaria. Camilo passou correndo rente a mim, arrastando a parte solta da sanfona e um monte de gravetos e folhas secas que ela vinha arrebanhando igual a um rastelo. Embrenhou-se mais para o fundo do rasgo de chão e lá acomodou-se por uns vinte minutos.
Acabada a correria, ouvi a veraneio dando meia-volta e descendo rumo ao centro da cidade.
Daí a pouco, quando já me preparava para sair do meu esconderijo, escutei um FI-FO-FU-FUIM interminável. Voltei os olhos em direção àquele barulho estranho e, graças ao clarão da lua, avistei Camilo recolhendo, com pouco cuidado, o fole que se esticara durante a correria. A cada centímetro de fole, ele murmurava um xingamento às polícias do mundo todo.
A partir desse dia e graças ao Cabo Tacílio, descobri que ter medo de cemitério é pura bobagem.
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