Narrativas do samba e do rap guardam semelhanças entre si que vão além das origens

Aparentemente distintos, os dois gêneros se aproximam quando os temas de suas letras versam sobre personagens como malandros e bandidos

Por Antonio Carlos Quinto

Samba e rap, apesar de serem estilos de música diferentes, podem guardar semelhanças e serem mais “íntimos” entre si. Afinal, ambos representam, em diversos momentos, as camadas mais pobres da população brasileira, com suas dificuldades e realidades. “Os dois estilos podem trazer, em alguns casos, figuras da marginalidade que povoam a cultura brasileira”, descreve a jornalista Rachel D’Ipolitto de Oliveira Sciré.

E foi escutando samba e pontos de umbanda sobre o universo da malandragem que a jornalista passou a pensar mais profundamente nestas figuras da marginalidade. “De que forma incorporam nossa realidade? Para quais sabedorias dão passagem? O que articulam sob a forma de transgressão?”. Tais questionamentos levaram Rachel a dar início, em 2016, a uma pesquisa no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. O trabalho investigou as semelhanças e diferenças entre as personagens do malandro e do bandido, a partir de sambas sobre a malandragem na obra de Germano Mathias, e de raps sobre o “mundo do crime” na obra do grupo Racionais MC’s.

Os mais de dois anos de pesquisas e análises resultaram no estudo de mestrado intitulado Ginga no asfalto: figuras de marginalidade nos sambas de Germano Mathias e nos raps do Racionais MC’s, apresentado no IEB em 2019, e que contou com a orientação do professor Walter Garcia. Após a apresentação de seu estudo no IEB, Rachel pretende publicar a dissertação em livro.

“As narrativas presentes nessa pesquisa nos ajudam a pensar sobre os processos históricos, econômicos e sociais que dizem respeito à experiência de marginalização em nossa sociedade” Rachel D’Ipolitto de Oliveira Sciré, jornalista – Foto: Acervo pessoal

O malandro e o bandido

O estudo foi realizado a partir da análise de sambas interpretados por Germano Mathias e raps do grupo Racionais MC’s. Rachel realizou uma análise estética das obras e não chegou a entrevistar os músicos. É a partir das análises que ela reflete: “As narrativas presentes nessa pesquisa nos ajudam a pensar sobre os processos históricos, econômicos e sociais que dizem respeito à experiência de marginalização em nossa sociedade”. Para a pesquisadora, o lugar do marginal, do excluído, do periférico e do fora-da-lei não é eventual em nossa cultura.

Álbum Ginga no Asfalto, de 1962 – Foto: Reprodução

Além das análises das narrativas, Rachel também investigou as representações dos malandros, dos bandidos e da violência urbana no acervo on-line do jornal O Estado de S. Paulo. “Essa pesquisa trouxe resultados interessantes que favorecem a quebra de estereótipos, quando se pensa, por exemplo, na figura clássica do malandro que povoa o universo do samba”, aponta Rachel. A imagem cultural do malandro simpático, de chapéu de palha, camisa de seda e sapato bicolor, que frequenta o mundo do samba, contrasta com as diversas figuras apresentadas como malandros nas “Notas Policiais” do jornal. “Como um japonês que falsificava molho de pimenta com terra, um rapaz negro que aplicava golpes por saber falar inglês, um soldado do exército que cometia furtos no ônibus, batedores de carteira chilenos, curandeiros discriminados como exploradores da ‘credulidade popular’, vendedores de maconha ou de cocaína, desordeiros, assaltantes, exploradores na zona do meretrício, entre outros tipos, que agiam amparados na esperteza ou no uso de armas brancas ou de fogo.”

Ao comparar, por exemplo, as narrativas do samba “Senhor Delegado”, gravado por Germano Mathias em 1957, e de um rap como “Homem na Estrada”, do Mano Brown, em 1993, Rachel afirma que é possível refazer uma trilha que liga as antigas “prisões para averiguação” aos modos extralegais de eliminação de suspeitos que são observados na atualidade. “Os dois protagonistas são incriminados de forma antecipada e enfrentam dificuldades para se defender, mas essas situações ganham escala com o passar dos anos – enquanto o malandro do samba está sendo preso pelo delegado, o homem na estrada é assassinado em sua própria casa pela polícia.”

Álbum Sobrevivendo no Inferno, de 1997 – Foto: Reprodução

Rachel explica que “o malandro, no samba, e o bandido, no rap do Racionais, são figuras que utilizam formas de expressão particulares, como a gíria”. Nas narrativas cantadas, segundo a estudiosa, eles aparecem como representantes das camadas pobres da população e têm uma inserção precária na estrutura produtiva. “Um dos pontos que unem malandros e bandidos, por exemplo, é a questão da sobrevivência, que surge nas letras de diferentes maneiras”, aponta Rachel. Abaixo, trechos das duas letras, “Senhor Delegado” e “Homem na Estrada”, que evidenciam as semelhanças, por exemplo, na dificuldade de sobrevivência que aparece nas narrativas por meio da luta para se manter vivo num cotidiano violento, seja no universo da malandragem ou no mundo do crime.

Senhor Delegado – Antoninho Lopes e Ernani Silva

… Sou rapaz honesto
Trabalhador, veja só minha mão (sou tecelão)
… Se o senhor me prender
Vai cometer uma grande injustiça (na Lapa)
Amanhã é domingo
Tenho que levar minha patroa à missa (na Penha)

Homem na estrada – Mano Brown

Já deram minha sentença e eu nem tava na treta
Não são poucos e já vieram muito loucos
Matar na crocodilagem, não vão perder viagem
Quinze caras lá fora, diversos calibres
E eu apenas com uma treze tiros automática
Sou eu mesmo e eu, meu Deus e o meu Orixá
No primeiro barulho, eu vou atirar
Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém
O que eles querem? Mais um pretinho na Febem

Persistência histórica

Por mais que haja uma diferença de tempo entre as duas músicas, pois Germano Mathias e Racionais não são contemporâneos, é possível reconhecer a persistência histórica de alguns temas e práticas na realidade brasileira. “Podemos citar como exemplo o uso da violência no dia a dia”, descreve Rachel.

O samba “Senhor Delegado” foi gravado em 1957. Já o rap “Homem na Estrada” é de 1993. As duas obras permitem verificar que a representação e a associação ficam evidentes pelos ambientes. “Por exemplo, sambas que se passam em morros e favelas, ambientes de diversão popular, como escolas de samba, gafieiras, ou que descrevem situações de opressão direcionada aos mais pobres”, descreve a pesquisadora. “Nos raps, as narrativas também tematizam o cotidiano nas periferias, por meio de discussões que versam sobre a pobreza, o racismo, o encarceramento em massa e a violência.”

Outras obras também foram analisadas por Rachel no estudo.

 

Como as que foram interpretadas por Germano Mathias:
“Lata de Graxa” (1958), de Mário Vieira e Geraldo Blota
“Minha Nega na Janela” (1957), de Doca e Germano Mathias
“Baiano Capoeira” (1962), de Geraldo Filme e Jorge Costa
“Zé da Pinga” (1974), de Padeirinho da Mangueira
“Senhor Delegado” (1957), de Ernani Silva e Antoninho Lopes
“O Assalto” (1965), de Zé Kéti
“Jerônimo” (1986), de Eduardo Gudin e Carlos Mello

E pelo grupo Racionais MC’s:
“Capítulo 4, Versículo 3” (1997), de Mano Brown
“Tô Ouvindo Alguém me Chamar” (1997), de Mano Brown
“Diário de um Detento” (1997), de Jocenir e Mano Brown
“Homem na Estrada” (1993), de Mano Brown
“Eu Sou 157” (2002), de Mano Brown
“Crime Vai e Vem” (2002), de Edi Rock

 

Os artistas

Germano Mathias nasceu, em 2 de junho de 1934, no bairro do Pari, em São Paulo. Tornou-se sambista em meio aos engraxates e outros trabalhadores informais que praticavam o samba no cotidiano, em rodas de batucada e de tiririca espalhadas pelas praças da cidade, tendo recebido também influência dos sambas tocados no rádio nas décadas de 1940 e 1950.

Apesar de nunca ter engraxado para sobreviver, Germano “vivia de expedientes” e se relacionava com as diversas personagens da zona do meretrício e do submundo paulistano. Alcançou grande sucesso na indústria do rádio e do disco entre o final dos anos 1950 e a década de 1970, como intérprete de samba-sincopado, tendo gravado 17 discos 78 RPM, dez LPs, inúmeros compactos, três CDs e um DVD.

 

O Racionais MC’s é um grupo de rap paulistano, considerado o mais importante do gênero no País, formado por Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue. Surgiu no final da década de 1980, em meio ao desenvolvimento da cultura Hip Hop no Brasil. Possui dois EPs, quatro álbuns de estúdio, dois álbuns ao vivo, uma coletânea e um DVD. Entre as produções, destaca-se o disco Sobrevivendo no Inferno, que, entre outros reconhecimentos, ocupa a 14ª posição na lista dos 100 melhores discos de música brasileira da revista Rolling Stone, superou 1,5 milhão de cópias vendidas (disco triplo de diamante) e, em maio de 2018, foi incluído à lista de obras obrigatórias para o vestibular 2020 da Unicamp, no gênero poesia.

Mais informações: e-mail [email protected]

 

 

Por: Antonio Carlos Quinto

FONTE: https://jornal.usp.br/ – Jornal da USP

FOTO CAPA: Germano Mathias e Racionais Mc’s – Fotomontagem: Vinicius Vieira/Jornal da USP