“Minha Mãe” por Sandra Fayad
Embora tenha nascido em 1920, no seu registro de nascimento constou que o fato ocorreu em 1922, um erro crasso, pois sua irmã mais nova também teria nascido quatro meses depois daquele mesmo ano. Como ambas eram filhas do mesmo pai e da mesma mãe, fica evidente que houve um erro por parte do cartório.
Em meio a brincadeiras, a família optou por comemorar o aniversário da dona Geny no dia e mês em que realmente nasceu e no dia e mês em que foi registrada. Neste caso, a despeito da timidez, ela aceitava entrar na brincadeira de assoprar as velinhas duas vezes por ano.
Sua existência foi cheia de sobressaltos dolorosos. Aos seis anos viu o pai ser assassinado, vítima de uma cilada por parte de seu compadre, que lhe tirou a vida quando passava vagarosamente na frente da sua loja. O motivo teria sido uma dívida pela aquisição de arame para cercar sua fazenda. Naquele ano, a safra foi ruim e o pagamento estava atrasado.
A viuvez da mãe, com mais seis irmãos menores, impôs-lhe obrigações domésticas incompatíveis com a sua idade cronológica, como subir em um banquinho para alcançar as panelas no fogão e cozinhar.
Aprendeu cedo a costurar roupas femininas e masculinas, sem descuidar dos estudos regulares. O professor era um alfaiate. Suas irmãs também se tornaram costureiras. As três, sempre muito unidas na vida e na profissão, passaram a coser ternos e camisas sociais, ganhando dinheiro suficiente para comprar tecidos para seus vestidos, laços, sapatos. Assim é que andavam sempre bem vestidas e bem penteadas. Belas e elegantes, chamavam a atenção dos rapazes da região do Sudeste goiano.
Foi assim que reencontrou Jorge, seu coleguinha de escola, com quem haveria de se casar em 1947. De 1948 até 1960 teve seis filhos, formando uma grande família. Dificuldades foram muitas e enormes, com trabalho em excesso e quase nada de conforto. Nos primeiros anos morou na fazenda, onde cozinhava para os mutirões de trabalhadores, organizava as colheitas de milho e mandioca e o processamento de farinhas, as colheitas de algodão e a confecção de roupas; orientava e ensinava a comunidade em torno da sede a ler, escrever, vestir-se, alimentar-se melhor, cuidar do bem estar físico, como pele, dentes… Com o tempo, já na cidade, mas com carga horária de trabalho pesado, a própria saúde começou a dar sinais de que necessitava de repouso, lazer, tranquilidade. Infelizmente não havia tempo e condições para cuidar do bem mais precioso, que é a boa qualidade de vida. E a vaidade da juventude deu lugar à tristeza. Foram várias as perdas súbitas de alguns irmãos: dois acidentes de carro em estradas federais, um suicídio e um acidente por uso indevido de medicamento. A cada notícia trágica o coração enfraquecia mais um pouco. Somava-se a isso as dificuldades financeiras, as moradias sem conforto, o cansaço pela luta muitas vezes inglória e as consequentes crises domésticas geradas por intermináveis discussões, desentendimentos e cobranças exageradas por parte do marido e dos filhos.
A mudança para Brasília em 1970 não lhe foi favorável. Como todo recomeço, exigia-lhe ainda mais esforço. E a resistência estava chegando ao seu limite.
Um dia foi hospitalizada. O pulmão e o coração exigiam cuidados especiais. Passou a fazer uso de medicamentos fortes, que a deixavam sonolenta o dia todo e não lhe traziam grandes benefícios.
Certo dia, entre uma e outra data de aniversário, resolveu desobedecer às recomendações médicas. Tomou uma decisão solitária. Suspendeu todos aqueles medicamentos, que lhe causavam efeitos colaterais indesejáveis. Foi visitar a irmã mais nova e contou-lhe sobre a sua decisão, dizendo-se ótima, “muito melhor sem aqueles remédios”.
Mas, menos de uma semana depois, sofreu um infarto fulminante, aos 63 anos. Era março de 1983.
Texto de Sandra Fayad
(Revisado por Tatiana André)
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