Memórias de um Peregrino – UN PUEBLAZO
Carrión de Los Condes, uma interessante cidade, foi o destino seguinte, onde cheguei após uma jornada monótona, num trecho plano e bem conservado, paralelo à pista asfaltada. Sem uma árvore sequer para oferecer um abrigo e sem as mesetas, para quebrar a mesmice, tipo de relevo que havia desaparecido. Fiz uma caminhada rápida e, em torno do meio-dia, já estava hospedado no Monastério de Santa Clara. Local muito bom, confortável.
Apos o banho de água quente, luxo nem sempre disponível nos albergues, saí para conhecer a cidade, fazer umas compras e almoçar. No passado, Carrión de Los Condes, por conta da beleza das suas mulheres, anualmente era obrigada a pagar aos mouros um tributo de cem donzelas, segundo reza a lenda. Tema, inclusive, retratado em uma de suas igrejas. Eu, que não sou nenhum califa, ter-me-ia contentado com uma, mas não consegui.
Aproveitei para comprar um novo par de meias, pois um dos meus fora esquecido pelo caminho. E interessei-me por um cartaz divulgando uma tourada programada para aquele dia. Infelizmente era em uma outra cidade. Depois, visitei as ruínas de uma igreja incendiada pelas tropas de Napoleão, hoje restaurada e transformada em museu.
A pequena cidade tem grande importância histórica, característica que atrai um intenso fluxo de turistas. “Un pueblazo”, como ouvi de um peregrino espanhol.
Como sempre, parti bem cedo e lamentando não encontrar nenhum bar aberto para tomar o meu café-da-manhã. Realmente, como eu percebera desde o primeiro dia, os espanhóis do interior não são afeitos a levantar cedo. Dificilmente se encontra um bar aberto antes das 9 ou 10 horas, horário em que, normalmente, o peregrino já percorreu uns 10 km, quase sempre em jejum. Isso era um sacrifício para mim, habituado a fazer uma boa refeição de desjejum. Vez ou outra, eu levava uma maçã ou uma banana para comer nesse período, mas isso não me tirava o apetite
Um pequeno esquecimento iria me causar o maior transtorno de toda a jornada: deixei no albergue a agulha usada para furar minhas bolhas. Era um material novo, comprado ali mesmo em Carrión, com receio de infecção.
Foi cansativa a caminhada ate Cazadilla de La Cueza, a primeira povoação do trecho, grande parte realizada sobre uma estrada de barro. No pueblo, havia uma placa indicando três alternativas de caminho: pelo bosque, pela trilha que acompanhava a pista asfaltada ou por uma outra estrada de terra. Tanto o primeiro como o último significavam aumento de distância, motivo pelo qual decidi, erroneamente, seguir pela trilha paralela à pista asfaltada, opção que eu sempre evitava.
Não havia andado nem 1 km quando percebi que a pequena trilha estava em processo de terraplanagem, com máquinas trabalhando no trecho. Com isso, o piso estava fofo e havia muita poeira. Não tive escolha: segui pelo acostamento da pista, pelo lado contrário à mão dos veículos, subindo rapidamente a colina que se iniciara logo à saída do pueblo.
Ao chegar ao topo da elevação, uns 3 km adiante, senti uma leve ardência nas duas solas dos pés. Parei em um recanto e, enquanto descansava um pouco, retirei os tênis para esfriar os pés e conferir o motivo daquele desconforto.
Assustei-me quando vi enormes bolhas, uma em cada pé, a maior delas no pé direito. Ambas, justamente no ponto de apoio dianteiro do pe, o que significava encrenca séria. Com certeza, foram consequência da caminhada sobre o asfalto quente, aliada ao ritmo forte que vinha imprimindo na caminhada daquele dia. Será que eu estava tentando alcançar alguém? O que não provoca um bom rabo de saia! A propósito, eu havia encontrado Denize em Carrión…
Sem a agulha para furar as bolhas, eu não sabia o que fazer. Não consegui furá-las com a unha, pois a pele nesse local é espessa. Sem alternativa, segui por uma rota fora do asfalto, que daria em Ledigos, um povoado situado 3 km adiante. Lá eu esperava comprar uma agulha, para amenizar a situação, pois temia que aquele incidente pudesse significar o fim do meu Caminho de Santiago.
Caminhava com sacrifício e lentidão, mancando, sob um sol muito forte. Demorei cerca de uma hora para chegar ao povoado, onde soube que lá não havia farmácia. Mas dispunha de um pequeno refúgio (como também são chamados os albergues), para onde me dirigi, na esperança de receber ajuda. No local não havia ninguém capaz de tratar minhas bolhas e não consegui sequer uma agulha nova. Recusei uma usada, com receio de uma infecção. O mais sensato seria tê-la desinfetado.
Confuso, sabendo da gravidade da situação, fiquei algum tempo indeciso, sentado numa sombra na calçada do albergue, quando um peregrino ciclista ofereceu-me uns curativos próprios para bolhas, do tipo segunda pele. Eu já havia visto aquele tipo de adesivo, sendo usado por alguns caminhantes, mas nunca os comprara. Mesmo porque eu sofrera somente pequenas bolhas nos dedos, que nunca exigiram maiores cuidados. Carregava comigo esparadrapo (tipo papel), gaze e anti-inflamatório em spray, material até então suficiente.
Resolvi então tomar um táxi e seguir até Sahagún, a única cidade das redondezas que dispunha de farmácia. A hospitaleira do albergue fez-me o favor de solicitar um táxi e fiquei esperando. Uma hora depois, a central de táxi ligou, avisando que o taxista não poderia apanhar-me, alegando estar ocupado. Pedi carona a várias pessoas do povoado, explicando que estava com problemas nos pés, sem condições de seguir caminhando. Ninguém se dispôs a ajudar-me.
Um morador local, que disseram-me estar saindo para Sahagún, após ouvir minhas explicações, disse-me, em espanhol:
— Você é um peregrino, vá caminhando. Se está enfermo, chame uma ambulância!
Um comportamento bem distinto da solidariedade geralmente oferecida aos caminhantes. Com a mesma humildade que lhe pedira ajuda, agradeci. A ajuda interessada, ou a não-ajuda, no caso, mesmo que o interesse seja mudar o próximo, não tem valor, pois humilha. Só se deve ajudar por ajudar, simplesmente. Por misericórdia. E só realmente ajuda quem dá algo de si. “Vós pouco dais, quando dais de vossas posses” ensinou-nos Gibran Kalil Gibran.
Mas, ao invés de ter ficado indignado, eu deveria tê-lo ouvido. Nas três horas seguintes, fiquei à margem da estrada pedindo carona. Sem êxito. Cheguei a esconder a mochila, pensando tratar-se de algum preconceito contra os peregrinos, mas foi em vão. Tanto lá, como cá, a carona é quase um privilégio feminino. Aliás, as peregrinas brasileiras sempre se gabavam das caronas que os espanhóis lhes ofereciam pelas estradas…
FOTO: Monastério de Santa Clara, onde me hospedei
FOTO: Estátua em homenagem aos Peregrinos, em Carrión de los Condes
FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr
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