Memórias de um Peregrino – UMA FADA NO CAMINHO

Os dias estavam cada vez mais curtos, sinalizando a aproximação do outono no hemisfério norte, mudança bem mais evidente naquelas latitudes. Em vez de amanhecer em torno das 6h30, como há poucos dias, agora a alvorada surgia próximo das 7h. Por isso, ainda estava escuro quando deixei Sahagún, no dia 18 de agosto, inseguro e sentindo muitas dores.

Segui lentamente, com algumas paradas para ajustar o curativo, que recuava com a movimentação. As dores impediam que eu pisasse naturalmente, alterando, com isso, o funcionamento de todo o processo de sustentação. Essa postura, alguns quilômetros adiante, também me provocou dores na coluna, sintoma que, a principio, atribuí a alguns desajuste nas correias da mochila.

A trilha, naquele trecho, era muito bonita e bem conservada, como as demais da região, mas com piso de brita e árvores plantadas em toda a extensão do percurso, a intervalos de cerca de 10 m. Havia até bancos de concreto, a distâncias regulares.

Depois de percorrer em torno de 6 km, avistei Bercianos del Real Camino, um pueblo típico da província de León, com as paredes das casas rebocadas com barro ou feitas de adobe aparente, tipo de construção que eu considerava tipico do interior do Brasil.
Estava faminto e, para a minha decepção, ao chegar ao povoado não encontrei nenhum bar aberto, onde pudesse tomar o café-da-manhã, apesar de já ser mais de 9h. Depois de muito observar, vi um homem entrando em um carro. Aproximei-me e indaguei se ele sabia onde poderia encontrar um bar aberto.

– El bar está cerrado. Hoy es lunes – disse ele.

Para desconforto dos peregrinos, nas cidades menores o comércio geralmente não funciona às segundas-feiras. Às vezes, nem os bares. E aquela resposta também serviu para situar-me no tempo, tão alheio ao calendário eu me encontrava. Constatação que me provocou alguma satisfação.

Desapontado, sentei-me em um banco de uma praça e comecei a comer um chocolate que levava na mochila, para eventuais emergências. Nesse momento, um peregrino que passava, compreendendo a minha angústia, alertou-me que o albergue local servia o desjejum.

Graças a esse providencial aviso, feito por interveniência de Tiago, como gosto de imaginar, conheci Lourdes, a hospitaleira do albergue. Ela era uma bonita balzaquiana, de cabelos negros e longos, de estatura mediana, com um semblante tranquilo e sempre disposta a ajudar: uma das mais marcantes personalidades que conheci no Caminho. Pelo seu aspecto, supus que fizesse alguma prática de autoconhecimento, mas não perguntei. Serviu-me o café-da-manhã e sentou-se à mesa, privillegiando-me com a sua interessante conversa.

Ela se preocupou com os meus ferimentos e recomendou-me que ficasse lá, até a situação melhorar. Se prosseguisse naquelas condições, explicou-me, pisando de forma errada por conta das dores, acabaria cultivando uma tendinite. Contudo, apesar dos problemas, eu não queria atrasar a minha programação, pois havia caminhado pouco naquele dia. Pensei bastante no caminho que ainda tinha pela frente e, mais uma vez, fui vencido pela pressa, pela compulsão em seguir adiante. Lourdes recomendou-me, então, ir somente até El Burgo Ranero, a próxima cidade. Fingi concordar, para não a desapontar.

Falamos bastante sobre o Brasil, como em qualquer conversa com espanhóis. Disse-me que, diariamente, algum brasileiro passava por lá. Depositei uma quantia de dinheiro no cofre do albergue, como contribuição espontânea pelo café-da-manhã que ela se recusou a cobrar e, ao despedir-me, disse-lhe do prazer em conhecer uma mulher tão bela e serena. Ela apertou a minha mão direita entre as suas, por alguns instantes, fitou-me com seu olhar compassivo, que parecia enxergar toda a minha insegurança, e falou:

– Vas en paz, brasileño ¡Buen Camino!

Aquela simples saudação foi o maior revigorante que experimentei em toda a viagem. Fui tomado por um entusiasmo indescritível, capaz de fazer-me superar os quilômetros seguintes com rapidez e sem nenhuma dor. Mas a mesma energia que vigorosamente me impulsionava adiante, parecia segurar-me naquele povoado. Sem querer, fui seguindo, com uma vontade louca de ficar.

A serenidade, compaixão e beleza de Lourdes cativam a todos, conforme percebi pelo relato de vários peregrinos. E apesar do tempo decorrido, é com extremo carinho que dela me recordo. Como uma fada do Caminho.

Apesar da excelência de suas condições, a trilha estava deserta. Parte dos peregrinos havia preferido seguir por uma rota alternativa. Entre as cidades à margem do Caminho, observa-se, às vezes, certa disputa pela atração dos peregrinos, cujo movimento impacta suas economias. Nos trechos em que há rota opcional, vê-se até propaganda dirigida aos caminhantes. Algumas cidades divulgam que por lá passa o verdadeiro caminho, o antigo caminho, que determinado roteiro tem a menor distância…

Foi uma caminhada solitária, numa região muito plana, sem ver um peregrino sequer. Em todo o trecho encontrei-me somente com um pastor, cuidando de seu rebanho de ovelhas. Seu enorme cão deixou-me temeroso, mas era dócil. Enquanto eu descansava e tomava água, conversamos um pouco. Desconfiado, ele se recusava a acreditar que eu vinha de tão longe, perguntando-me:

– Você está vindo de Roncesvalles a pé? Veio do Brasil somente para isso?

O Albergue Paroquial de Bercianos del Real Camino (o albergue de Lourdes).

FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

 

 

 

 

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