Memórias de um Peregrino – TIPOS DE PEREGRINOS
Foi na Sierra del Real, montanha próxima ao Cebreiro, a primeira vez que vi peregrinos a cavalo. Passaram esguios e rápidos, orgulhosos de seus animais, demonstrando pouquíssima identificação com os caminhantes. Sequer dispensaram-me um Buen Camino. Claro, isso não significa que fazer a peregrinação a cavalo não seja bom ou válido. Mas é uma experiência peculiar.
Somente em Tricastela, já na Galícia, pude conversar um pouco com os peregrinos de botas, que também lá se hospedavam, num grupo de seis cavaleiros. O albergue da localidade dispunha de área de pastagem, própria para recebê-los, particularidade que ainda não conhecera. Esse fato levou-me a crer que eles percorrem rotas distintas das utilizadas pelos caminhantes.
A peregrinação a cavalo, evidentemente, exige menos esforço físico que as demais modalidades. Mas, em compensação, os cavaleiros dispõem de menos tempo para descanso. Quando alcançam seus pontos de pernoite, têm também de cuidar dos cavalos: banho, comida, água, conferência e conserto de ferraduras, retirada das selas e reposição no dia seguinte. É verdade que os cavaleiros não sofrem de problemas nos joelhos, bolhas, calos etc. Mas devem ter seus incômodos com as assaduras…
É cara a opção de fazer o Caminho a cavalo: quem não dispõe de uma montaria terá uma boa despesa para alugá-la ou comprá-la. Além disso, os cavaleiros arcam com os custos adicionais de manutenção dos cavalos, e isso, certamente, explica o pequeno número de cavaleiros no Caminho – algo em torno de 0,3% dos peregrinos que concluem a peregrinação.
Já as bicicletas são bem mais numerosas, meio de transporte preferido por 1/3 dos peregrinos. Muitos dos ciclistas fazem o Caminho em grandes equipes, com apoio logístico oferecido por vans que os acompanham e transportam suas malas ou mochilas. É comum abandonarem as trilhas e trafegarem pelos acostamentos das estradas, chegando a percorrer até mais de 100 km por dia, dependendo do tipo de relevo.
Os demais ciclistas, sem apoio de retaguarda, geralmente dividem as trilhas com os caminhantes e levam na garupa uma mochila própria para bikes. Fazem uma média de 50 km por dia, superior à media dos cavaleiros (em torno de 30 km) e o dobro da distância média diária percorrida por aqueles que contam apenas com suas próprias pernas.
Comparativamente aos pedestres, a vantagem da utilização de bicicleta é reduzir pela metade, praticamente, o período da viagem — para os que carregam a mochila — ou a 1/3 — para aqueles que têm serviço de apoio. E a bike torna-se uma opção bem menos dispendiosa que o cavalo.
Há serviços de aluguel de bicicletas para se fazer o Caminho de Santiago e também empresas aéreas que, promocionalmente, dispensam a cobrança do transporte da magrela.
Os peregrinos caminhantes são os mais numerosos e tradicionais. Certamente isso ocorre pela simplicidade e pelos resultados obtidos. As caminhadas diárias favorecem a introspecção e aguçam a viagem interior. E estão mais próximas da proposta de austeridade e de recolhimento que muitos buscam na peregrinação.
Se bem que alguns caminhantes também se deem ao luxo de contratar o apoio de vans, que levam suas mochilas e dão assistência alimentar, farmacêutica e turística, esta última nos momentos de folga. Mas são poucos e quase não são vistos, talvez porque se hospedem em hotéis. Outros preferem fazer todo o Caminho de carro ou ônibus. Tudo é válido, não obstante os resultados sejam distintos, naturalmente.
Parte dos peregrinos forma grupos, ao passo que outros preferem fazer uma caminhada solitária (como eu) ou em casal. Também se distinguem pela idade (de todas as faixas etárias), pelas mais diversas procedências (notadamente da Espanha, Alemanha e França, nesta ordem) e pela motivação.
Enquanto, no passado, os peregrinos iam a Santiago buscar a salvação da alma, os atuais, quase sem exceção, vão celebrar a vida, sem perder de vista o crescimento espiritual, mudança que, indubitavelmente, constituiu um extraordinário avanço.
Uma fama de milagres e de misticismo, herdada das antigas tradições, ainda sobrevive em torno do Caminho de Santiago, tema explorado desde o Codex Calixtinus, coleção que tem um livro sobre o assunto (Miracula Sancti Jacobi). Apesar do sentido religioso atual não ter a mesma conotação do passado, esse aspecto ainda atrai o interesse ou a curiosidade de parte dos peregrinos, havendo até aqueles voltados para tradições não cristãs.
Além da busca espiritual, subjacente em quase todas as motivações, muitos são levados pelo interesse turístico e cultural, enquanto boa parte dos jovens enfatiza o aspecto esportivo. No fundo, todos esses objetivos acabam por se mesclarem, oferecendo a peregrinação uma excelente oportunidade para o indivíduo se conhecer mais, testar limites, determinação e reavaliar projetos, valores e prioridades. Metas que, se alcançadas, por si só, representam conquistas espetaculares. Verdadeiros milagres.
Mas, como diz a propaganda, não interessa qual a razão o leva a fazer o Caminho de Santiago: não há motivo certo ou errado. E se você ainda não sabe por que deseja fazê-lo, não se preocupe, pois vai descobrir isso na própria caminhada. Ou depois.
FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr