Memórias de um Peregrino – O CASTELO

Na manhã seguinte, passei em Ponferrada, situada apenas 3,5 km após Molinaseca. É uma grande cidade, com cerca de 100 mil habitantes, bonita e civilizada. Deve seu nome a uma antiquíssima ponte, que tinha proteções laterais de ferro (do latim pons ferrata), construída sobre o Rio Sil, para ajudar aos peregrinos que demandavam a Santiago.

A cidade conserva em excelentes condições o Castillo del Temple, uma colossal fortaleza construída no século XII. Foi doada pelos Reis de León aos Templários, que dominaram toda aquela região e, a partir do castelo, davam refúgio e proteção aos peregrinos. Extinta a Ordem, os Caballeros del Temple morreram defendendo o seu castelo ou foram degolados, segundo consta.

Ponferrada fica na região do Bierzo, a noroeste da Província de León. Recebe forte influência da Galícia — cujas montanhas já se revelam no horizonte — e das Astúrias, com as quais faz fronteira. Tem uma cultura e território peculiares e suas minas de ouro foram amplamente exploradas pelos romanos.

Fotografei o castelo e segui adiante, numa caminhada dura, sob um calor intenso, entre muitos vinhedos, até alcançar Villafranca del Bierzo, 23 km depois de Molinaseca. Em determinado trecho, cochilando à sombra de uma árvore, reconheci aquele brasileiro visto de passagem no albergue de Rabanal del Camino. Conversamos um pouco e fui em frente.

Villafranca, que foi capital da ex-província do mesmo nome, é uma interessante cidade, boa parte dela em arquitetura medieval, cujo melhor exemplo é a imponente catedral. Situa-se aos pés da serra onde se encontra o mais temido monte do Caminho: o Cebreiro. No passado, Villafranca também detinha a regalia de conceder o jubileu, deferência feita àqueles que, por motivos superior, não podiam enfrentar a montanha. Sinal de prestígio, nos tempos idos.

Circulei pela cidade — que dispõe de um castelo, pertencente a uma aristocrata família local —, fiz umas compras, enviei postais e comi a minha única refeição do dia. Os pés estavam bem melhores e só esperava não ter mais problemas daquela espécie.

Nunca mais usara as sandálias, para não empoeirar os curativos, exceção feita aos passeios pelas cidades de pernoite. Turismo geralmente paradoxal, porque, após enfrentar as duras jornadas, as pernas estavam doloridas, clamando por repouso. Mas, ao mesmo tempo, era irresistível o interesse em conhecer os lugares, o povo e a cultura de cada região. Acabava fazendo algumas visitas, a despeito de ficar sempre aquela sensação de que poderia ter conhecido mais, permanecido ali pelo menos mais um dia…

Em Villafranca, hospedei-me no albergue do Jato, figura carismática e misteriosa. Compassivo com os peregrinos, procura aliviar-lhes as dores, facilitar-lhes a missão. Enquanto tomava um refrigerante, conversando com Lúcia no bar do albergue, ela reclamava de uma forte dor na coluna, na altura da nuca. Não sei se Jato a ouviu, o que seria improvável, pela distância, ou se identificou o problema pelos gestos. O fato é que logo em seguida, ele se aproximou, pediu licença e passou a massagear o pescoço da minha amiga. Logo depois da massagem, retirou-se. Lúcia, incrédula, dizia que a dor simplesmente desaparecera.

Parti no dia seguinte literalmente preparado para subir a serra, operação que duraria todo o dia. Para enfrentar tamanho desafio, Jato oferece aos peregrinos uma mordomia irrecusável: em troca de módicas 300 pesetas, ele leva as mochilas até o povoado do Cebreiro, em uma van, aliviando bastante o esforço da subida. Levei apenas uma pequena mochila de plástico, improvisada a partir de uma sacola, com alguns medicamentos e o cantil.

Fui pela trilha da Sierra del Real, montanha que se inicia logo à saída da cidade, num aclive muitíssimo forte. Preferi evitar a caminhada no acostamento da movimentada estrada que acompanha o vale, ligação da Galícia com Madri. A via se encontrava em processo de duplicação e isso aumentava mais ainda o perigo. Fiz uma opção pelo esforço e pelo cansaço, compensados pela beleza da paisagem e pela solidão.