Memórias de um Peregrino – FIM DE JORNADA
No dia seguinte, orei no túmulo do apóstolo e assisti à missa dedicada aos peregrinos. É uma pomposa cerimônia, com um belo sermão e o famoso espetáculo do botafumeiro, enorme incensório, usado para a queima de incenso, prática que, na antiguidade, tinha o objetivo de neutralizar o odor pouco agradável exalado pelos peregrinos… Preso a um cabo pendurado no teto, ele é balançado durante alguns minutos.
Mas, hoje, na missa dedicada aos peregrinos, eles são raros, se comparados aos turistas. Recriminei-me, mas não consegui conter o desapontamento.
Circulei por Santiago e, às 16h, tomei um ônibus com destino a Finisterre, onde cheguei por volta das 18h. Depois de conseguir hospedagem em um hotel, dirigi-me ao Farol, situado a uns 3 km fora do pequeno povoado à beira-mar. Dividi o táxi para o Farol com um peregrino francês, Luciano, que também havia viajado no ônibus. O Farol fica num cabo, tomado por grandes pedras, onde estava sendo concluída a construção de um hotel de luxo.
Finisterre (ou Fisterra, em galego) é uma cidade turística, majoritariamente habitada por pescadores, situada a 80 km de Santiago, na costa atlântica, um dos pontos mais ocidentais da Europa. Desde os primórdios do Caminho, tradicionalmente os peregrinos para lá se dirigiam, após alcançar Santiago, com o objetivo de conhecer o então presumido fim do mundo e assistir o sol cair no abismo, motivo que escolhi para compor a capa deste livro, com uma foto feita quando eu assistia o pôr-do-sol ao lado do Farol. Essa tradição precederia até mesmo a própria fundação de Santiago de Compostela e seria uma prática da antiga religião.
Alguns, como Joan Bueno o fez, vão caminhando a Finisterre. Outros, como eu, não encaram a visita como um compromisso da peregrinação, mas um repouso num lugar agradável, uma reflexão sobre a empreitada concluída.
Em Finisterre ainda se realiza o tradicional ritual da queima da roupa usada na peregrinação. No passado, isso era feito como forma de desinfecção, tanta era a sujeira das vestes ao final da viagem. Hoje, o objetivo é simbólico, uma forma de marcar o final da jornada e o início de um processo de renascimento pessoal. Mas, como o costume é queimar a roupa com a qual se está vestido, expondo o corpo nu, muita gente curiosa aguardava o cumprimento da tradição…
Esse fato frustrou a minha intenção de cumpri-la ao pé da letra. Nenhum peregrino quis se expor. Prevenido, eu havia levado em uma sacola, a roupa usada no último trecho da caminhada, com a qual cumpri a tradição. Também em observância ao costume, devolvi a minha vieira ao mar.
Depois fiquei quase uma hora no local, sentado nas pedras, refletindo e apreciando a beleza do lugar. Sentia uma alegria imensa por ter alcançado a minha meta, mas havia umas perguntas me instigando a mente: E agora? Fazer o quê? Aquele sentimento possibilitou-me compreender melhor os peregrinos que vi retornando a pé para casa.
Nem vi o tempo passar, enquanto apreciava o mar, envolto em minhas reflexões. O céu fora tomado por nuvens negras, que logo se transformaram em uma forte chuva, a primeira desde que saí de Roncesvalles, 31 dias antes. A pesada capa, que eu carregara desde os Pireneus, por quase 800 km, sem usá-la uma vez sequer, havia ficado no hotel, dentro da mochila…
Já anoitecia quando tomamos um táxi, direto para um bom restaurante. Esperando o jantar, Luciano contou-me sua interessante história. Nascera na Argélia, na África, então colônia francesa, onde moravam seus pais, espanhóis. Devido à má situação da Espanha, àquela época, os pais o registraram como cidadão francês e nunca permitiam que ele falasse o castelhano, o idioma que ouvia em casa. Queriam que fosse um francês. O espanhol, para ele, passou a ser uma língua proibida, um idioma maldito.
Após a independência da Argélia, a família se mudou para a França, onde ele teve poucas oportunidades de falar o espanhol, a não ser quando conversava com a avó, que logo morreu. Luciano, que disse ser conhecido como Espanhol, carregou essa frustração por toda a vida, até que, com seus 45 anos, resolveu fazer o Caminho de Santiago.
Partiu de sua própria casa, em Lourdes, onde vive e trabalha. Ao entrar em território espanhol percebeu, com surpresa, que não havia esquecido totalmente o castelhano. Ainda podia comunicar-se naquela língua, banida de sua vida tanto tempo atrás. Contou a sua história reluzindo de felicidade. Afirmou que, doravante, retornaria sempre à Espanha, e, nas próximas férias, voltaria a Finisterre, com a namorada. Mas, desta feita, viria de carro.
Minha mente ficou latejando, fazendo-me refletir sobre a importância da realização dos nossos projetos. Mesmo aparentemente esquecidos, os sonhos não realizados, as nossas frustrações, acompanham-nos por toda a vida, como na história de Luciano, provocando danos incalculáveis e, às vezes, irreparáveis. Silenciosos, os nossos sonhos ficam esperando tomarmos uma atitude — jogarmos a mochila nas costas e partir.
Mais tarde, no hotel, enquanto o sono não vinha, eu pensava se ficaria ali, naquele local de veraneio, aguardando Joan, ou se tomaria um ônibus com destino à cidade do Porto ou Lisboa, já que ainda dispunha de mais 3 dias de férias. Concluí que não tinha nenhuma condição emocional para fazer turismo. Não queria perder aquela plenitude que adquirira na peregrinação.
Tampouco conseguiria ficar em Finisterre, fazendo veraneio. Minha inquietude venceu mais uma vez. Retornei de ônibus a Santiago na manhã seguinte, onde tomei um voo para Madri. Na mesma noite parti com destino ao Brasil. Em algumas horas atravessei o Atlântico, numa viagem noturna, e na manhã seguinte estava em minha casa, em Brasília.
Novamente, parecia haver caído de paraquedas em outro mundo. Mas, desta vez, o mundo permanecia o mesmo. Eu é que havia mudado.
FOTO: O Farol, na visão do pintor Joan Bueno
FOTO: O farol
FOTO: Queimando a roupa usada no Caminho, em Finistere
FOTO: Eu diante do mar, em Finistere (capa da 1a edição do livro Memórias de um Peregrino)