Memórias de um Peregrino – A FORÇA DO APEGO

Aquela caminhada solitária entre as serras, numa manhã nublada e com forte nevoeiro, embora exigisse um intenso esforço físico, ofereceu-me os instantes de maior introspecção da viagem. Momentos de muita lucidez, aceitação, humildade, compaixão e amor. Em minhas reflexões, pude fazer um paralelo da minha vida com os principais problemas encontrados no Caminho, procurando ver suas razões, seus significados e suas mensagens.
Refleti como nunca sobre os males provocados pelo apego, a mais didática lição ensinada na viagem. No Caminho, apesar da mochila representar uma carga expressiva, responsável por cansaço, dores e insegurança, quase todos relutam, enquanto podem, em eliminar o excesso de peso. Apesar de todas as recomendações e evidências, os peregrinos sentem dificuldade em se desfazer da sobrecarga que levam nas costas. Porque somos condicionados a juntar, somar, economizar e reter nossos bens, com os quais nos identificamos.
Conduta que tendemos a imprimir também às nossas ações, relacionamentos e crenças. Não que devamos ser ambíguos ou incoerentes. Mas abertos à discussão, ao entendimento e às mudanças, num mundo em permanente transformação. De nada nos servem os preconceitos, pois, como diz aquela analogia grega, é impossível atravessamos o mesmo rio duas vezes, já que suas águas nunca serão as mesmas.
Entretanto, as mudanças comportamentais são demoradas e doloridas, como no Caminho, onde hesitamos em abrir mão do peso descartável. Mas são indispensáveis e exigem um treinamento permanente, diário, como nos ensina a peregrinação. Claro, cada um de nós tem maior ou menor apego, que varia também de acordo com as circunstâncias. Pode até ser um problema crônico para alguns: ao final da viagem, conheci um peregrino francês que me contou ter carregado, por mais de 1.000 km, várias peças de roupa e um par de tênis totalmente desnecessários, nenhuma vez utilizados.
Pouco significam as dores do Caminho, porém, se confrontadas ao sofrimento e ao sacrifício que nos impomos cotidianamente para obter, manter ou desejar os bens materiais. O quanto nos custa em cansaço, esforço, frustração, angústia e depressão a nossa descabida ambição em manter ou desejar determinado padrão de vida? Possuir carros de luxo, mansões, roupas mofando no armário, uma polpuda conta bancária, cargos destacados.
E aos outros? Quanto prejudicamos aos que nos cercam para realizar nossas ambições? Aos nossos cônjuges e aos nossos filhos? Aos nossos colegas e subalternos? Quantas doenças sofremos, somatizando essas ambições? E quanto peso dos outros levamos nos ombros? Às vezes, superprotegendo os filhos, impedindo-os de crescer, por exemplo.
Sábios são os que compreendem que o verdadeiro poder não está em possuir as coisas, pois quem muito as deseja, na realidade, é por elas possuído. A ambição é insaciável e apegar-se às coisas, nesse nível, equivale a não as ter. Só dispõem realmente de seus bens aqueles que os utilizam e usufruem com amor — o único alimento do espírito —, porque o apego é puro egoísmo.
O acúmulo de posses pode revelar mais insegurança do que precaução. Como questionou Gibran Khalil Gibran (¹), “o que trará o amanhã ao cão ultraprudente que enterra ossos na areia movediça enquanto segue os peregrinos para a cidade santa?”
(¹) O Profeta, de Gibran Khalil Gibran, tradução de Mansour Challita, ACIGI, pág. 17.
Antigas minas de ouro a céu aberto, exploradas pelos romanos em Villafranca del Bierzo.
FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

BLOG DA MAYSA ABRÃO TEM COMO APOIO CULTURAL:

Endereço: Rua Nilo Margon Vaz, 200, Centro, Catalão – GO, 75701150.
Highlights info row image (64) 3411-6994