Memórias de um Peregrino – A CRUZ DE FERRO
Tomei o café-da-manhã no próprio albergue, pertencente à Associação Saint James (designação inglesa para São Tiago), uma organização de voluntários que mantém o refúgio e oferece essa refeição a seus hóspedes, gratuitamente. Disposto e com o pé melhor, tive um bom desempenho na subida da montanha, cujo cume fica a 1.517 m de altitude e se constitui no ponto mais alto do Caminho, onde tirei foto, auxiliado por um casal de austríacos.
Na subida da serra passei por vários locais muito interessantes, como Foncebadón, o famoso “pueblo” abandonado. Na verdade, o povoado tem umas poucas casas habitadas e inúmeros cães, que não me molestaram, apesar do receio. É difícil acreditar que, nesse local, tenha ocorrido um Concilio, dez séculos atrás. Esse e outros lugares, situados numa região de antiquíssima exploração mineral, ficaram à margem do progresso, após o esgotamento de suas minas.
Em Foncebadón reencontrei aquele paulista visto em Rabanal, ao qual ofereci ajuda, pois ele sentia muitas dores. Seu estado inspirava cuidados e sua capacidade de prosseguir era duvidosa, fato que talvez se tenha confirmado, porque nunca mais o vi. Ele agradeceu, trocamos algumas frases e despedi-me. Depois de dar alguns passos, eu me voltei, acenei com a mão e desejei-lhe “Buen Camino”. Percebi, então, a emoção que ele sentiu ao ver a bandeira brasileira colada à minha mochila.
— Bonita bandeira! Muito bem! — foi tudo o que ele conseguiu dizer.
A alguns quilômetros dali encontrei a Cruz de Ferro, um dos mais famosos símbolos do Caminho, localizada no Monte Irago. Segundo a tradição, a cruz original teria sido erguida por um ermitão que viveu ali, nos primórdios do Caminho, onde outrora teria existido um altar em homenagem a Mercúrio, edificado pelos romanos.
De acordo com a lenda, realizam-se os pedidos feitos ao se jogar uma pedra aos pés daquela cruz, costume herdado dos romanos. Tantos já cumpriram a tradição, que a cruz fica sobre um monte de pedregulhos. Em decorrência disso, é raro encontrar alguma pedra nas redondezas e, alertado no albergue sobre isso, apanhei a minha com antecedência.
Logo após a Cruz de Ferro, visitei um albergue em estilo medieval, todo construído em pedras, até o telhado. Interessante e muito rústico. Tomei água, fotografei e segui em frente, imaginando o frio proporcionado por aquela construção, durante o inverno.
Almocei em El Acebo, um interessante povoado fincado na descida da serra, onde saboreie uma excelente salada mista, acompanhada de arroz (até que enfim!) com frutos do mar, na Cantina de José. Vi naquele local as primeiras construções com trelhas negras, feitas de uma pedra parecida com a ardósia, muito apropriada para o escoamento de neve, intensas nos invernos da região.
Na varanda da cantina formamos uma excelente mesa, com duas lindas catalanas, um asturiano que conhecia o Brasil e Joan Bueno. Depois do almoço, imitando o grupo, curti uma siesta, deitado sobre a esteira, numa sombra próxima ao restaurante.
Antes que despertassem, segui em frente. Fiz, solitariamente, a agradável descida da serra, com paisagens lindas e penhascos altíssimos. Vista do alto, a estrada que acompanha o vale parece uma faixa negra, com carrinhos em miniatura. Em alguns trechos, a antiquíssima trilha passa em sulcos sobre rochas de arenito, cavados pela movimentação dos peregrinos no decorrer dos séculos. Às 17h30 alcancei Molinaseca, uma aconchegante cidadezinha, com uma refrescante represa de água na sua entrada, onde se divertia a juventude local. Consegui vaga no albergue, onde mais tarde chegou o grupo com o qual eu havia almoçado.
As duas catalanas chegaram com um americano a tiracolo, o único, aliás, que vi em todo o Caminho. Logo depois, desapareceram. Também por aqui os americanos, ingleses e alemães fazem muito sucesso. Sangue latino, alma cativa, como diz a música dos Secos e Molhados.
FOTO: Paulo Hummel no ponto mais alto do Caminho de Santiago
FOTO: Paulo Hummel na Cruz de Ferro
FOTO: Albergue de Pedras, na Serra
FOTO: Restaurante em El Acebo (a sombra da árvore onde fiz a siesta)
FOTO: A estrada, vista de cima da serra
FOTO: Molinaseca, vista da serra
FOTO: Foncebadón, o pueblo abandonado
FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr
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