LEI ÁUREA: 136 ANOS – A ABOLIÇÃO QUE AINDA NÃO CHEGOU
Em uma única linha, a Lei No. 3.353 de 13 de maio de 1888, declarava extinta a escravidão no Brasil, após aproximadamente 400 anos de jugo europeu português do tráfico de povos africanos. “Art. 1º. É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil”. Sem assegurar qualquer compensação financeira ou garantias sociais aos recém alforriados. Alicerçado no gesto histórico e generoso de Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Gonzaga, mais conhecida entre os súditos por Princesa Isabel, com sua pena dourada, descortinou um novo capítulo na vergonhosa escravidão, fomentada pelo racismo, pelos lucros metropolitanos e pelas elites coloniais. A trajetória dos escravizados afro-brasileiros, em tese, chegava ao fim no último país das Américas. Era a culminância de uma série de leis — Lei Eusébio de Queirós (1850), Lei do Ventre Livre (1871), Lei do Sexagenários (1885) —, que beneficiaram muito mais os senhores escravocratas e os ingleses, que os próprios escravizados.
A simbiose dos filhos da natureza e sua ancestralidade, sob a abundância dos Baobás, que trouxeram e conectaram suas raízes e suas tradições, sua grandiosidade e resistência, imortalizando uma África desconhecida, negada por seus algozes europeus e renegada por seus invasores, por razões as quais nos envergonham e reverberam nas vozes silenciadas. “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”, afirma um provérbio africano.
Como se não bastasse o calvário de homens e mulheres retintos, que pela cor da sua pele foram absurdamente subjugados como indivíduos inferiores — a eugenia e seus horrores racistas —, que em sua terra originária, muitos eram reis e rainhas, expressões máximas de força, garra e poder. A chegada dos imigrantes — principalmente europeus —, com subsídios governamentais e privados, foram substituindo a mão de obra escravizada, preta alforriada, pela remunerada e branca. Resultando em um crescente excedente de mão de obra outrora escravizada, constituindo-se em uma massa social e étnica de indivíduos marginalizados, invisibilizados e descartáveis. Os quais nesse novo cenário, de pilares na manutenção das riquezas da nação, a relegados de despojos de mão de obra e escória brasileira.
Após mais de um século de uma lei para “inglês ver”, o banquete dos provincianos racistas e seus coniventes oficiais, continuam ocupando e apropriando de forma irregular, de terras quilombolas e indígenas, responsáveis pela miséria de pretos e pretas anônimas, invisíveis, em presépios vivos sob viadutos, apinhados em morros, que ainda lutam pela verdadeira liberdade, inclusiva, justa e perenes Revoltas da Chibata. Os escravagistas do século XXI, subsistem deleitando na intolerância racial e religiosa, vertendo sangue alheio de um povo que resiste para existir, em um êxtase sádico, um delírio típico dos racistas. O trabalho cativo, fomentou e fomenta, a avidez de uma sociedade de covardes, que ostentam a arrogância e a injustiça, como tributo à imbecilidade, em balas legais que nunca são perdidas, em pele preta, são sempre alvos. Como os 257 tiros no carro do músico preto Evaldo Rosa e sua família no Rio de Janeiro, disparados pelo Estado brasileiro, porque “confundiram” o veículo. Só nunca confundem condomínio de luxo com favela, nem brancos famosos com pretos anônimos.
O fétido perfume que exala da Casa-Grande, cheiro putrefato desses homens que exalam seus podres poderes, que ainda governam e massacram a grande senzala brasileira, penduradas em barrancos, que a eugenia brasileira e as tentativas de branqueamento, sempre viram como a ameaça e atraso ao progresso. De troncos que ainda gemem e sangram pelos açoites da indiferença, nos camburões metamorfoseados em câmaras de gás e da política neroniana do dedão sempre para baixo nas periferias. O Brasil é o país com a maior população preta fora do continente africano, erguido pelo suor e pelo sangue da resistência de povos de diferentes regiões da África como os Bantus, do Congo, Angola e Moçambique. Os Nagôs, os Jejes, os Hauçás, os Malês, os Sudaneses, originários da Nigéria, Daomé e Costa do Marfim.
A efeméride do 13 de maio dos 136 anos da assinatura da Lei Áurea, há muito mais razões para uma reflexão, um debate nacional sobre a adoção de políticas públicas afirmativas, que para comemorações. A necessidade de ações governamentais, juntamente com a sociedade civil, no combate ao racismo, a violência contra a população negra, a realidade de exclusão e miserabilidade dos afrobrasileiros e instrumentos possíveis, mecanismos viáveis, para a construção de uma sociedade antirracista, equânime e uma educação emancipadora. As comemorações, ainda que residem nas pequenas conquistas pessoais, profissionais; na ocupação dos espaços públicos, espaços de vozes silenciadas, de memórias dolorosas, de tradições, de resistência; espaços ocupados por pretos e pretas nas mais diversas áreas do conhecimento, nos espaços culturais e suas performances, ainda que em um cenário marcado pelas desigualdades, pela violência, pelo machismo, pelo preconceito, camuflado sob os auspícios do discurso religioso.
A abolição promoveu o Império e a elite racista em berço esplêndido, abrindo caminho para a República coronelista e a perpetuação do colonialismo patriarcal, corroborando com uma abolição em que os alforriados foram defenestrados e marginalizados pelo Estado, sob a narrativa histórica do mito da democracia racial, ovacionada por parte de uma sociedade equivocada e cúmplice. Com um efeito voltado para os interesses econômicos da elite escravocrata em transição de investimentos e negócios, invisibilizando o povo negro, sua história, sua luta, sua cultura, suas tradições e suas contribuições na construção das riquezas da sociedade brasileira — financiando, subsidiando a imigração europeia branca, para suplantar a mão de obra preta. Mantendo abertas as veias da América e as feridas do racismo e da discriminação. Que nestes 136 anos, a grandeza de todos os anônimos que aqui desembarcaram, resistiram, lutaram, tombaram em batalhas Homéricas pela sobrevivência, não menos fortes e grandiosos em seus ideais, como Zumbi e Dandara dos Palmares, de Castro Alves, de Joaquim Nabuco, de Luiz Gama, de Lima Barreto, de Pixinguinha, de João Cândido, de Pelé, de Milton Santos, de Mãe Menininha do Gantois, de Carolina Maria de Jesus, de Elza Soares, de Conceição Evaristo, entre tantas e tantos outros, que continuam a inspirar, em manter acesa a flama da luta, da resistência, por novas conquistas e espaços. Que o cultivo filosófico da ética seja permanente, o olhar antropológico para as diferenças incansável, para que a ignorância e a estupidez, não nos desumanize.
Portanto, que cada um desses vultos — Presentes! — em sua extensa representatividade, imersos em seus ancestrais, continuem dando vozes aos milhares de ignorados por este país, legado dos mais de 4 milhões de africanos e africanas, desterrados e desterradas de sua terra natal, no processo diaspórico da triangulação do Atlântico Negro. Como em Conceição Evaristo, “Combinaram de nos matar. Mas nós combinamos de não morrer”.
Que o 13 de maio, signifique muito mais do que é propalado. Sem o proselitismo romântico e ingênuo, da misericórdia, da bondade e do heroísmo altruísta que nunca houve por parte da Princesa Isabel. Assim, a Lei Áurea, aboliu a escravidão, não o racismo.
Texto: Marcos Manoel Ferreira
Marcos Manoel Ferreira, Professor, Pedagogo, Historiador e Escritor. Doutorando pela UFG (Aluno Especial) em Performances Culturais; Mestre em História – Cultura, Religião e Sociedade; Especialista em História e Cultura Afro-brasileira e Africana; Especializando em Relações Internacionais; Pedagogo com Habilitação em História da Educação Brasileira e Historiador. professormarcosmanoelhist@gmail.com
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