Catalão 157 anos – Anthero da Costa Carvalho e o homicídio de Albino Felippe do Nascimento por Elaine Divina da Silva Fagundes
No Cárcere
Das grades deste cárcere maldito
Os dias lentamente vão passando
E a tristeza que vem n´alma pulsando
No peito um coração que bate aflito […]
Anthero da Costa Carvalho
Na década de 1930, chegou a Catalão Anthero da Costa Carvalho, poeta, farmacêutico, natural de Jataí – GO. Nesta cidade, em pouco tempo, conquistou o prestígio da população e fez muitos amigos. Era visto como um homem caridoso. Atendia gratuitamente àqueles de menor poder aquisitivo e, inúmeras vezes, socorreu pessoas e crianças à beira da morte, salvando-lhes a vida.
Anthero vivia feliz com Amélia e seus dois enteados, tinha uma farmácia local, onde com muita dedicação, trabalhava. Ao mesmo tempo, expandia seus negócios, participava da vida social da cidade, com carisma e educação tratava a todos da mesma forma.
Mas, infelizmente, nesta época, Catalão era uma cidade sem lei, onde o que prevalecia era o “fazer justiça com as próprias mãos”. E, neste cenário, Anthero foi acusado de ser o mandante do homicídio de um rico fazendeiro, seu amigo íntimo, sendo preso, torturado e martirizado até a morte, por um crime que dizem não ter cometido. Por essa razão, até os dias atuais, Anthero é lembrado, tendo vários escritos a respeito de sua biografia e morte, sendo considerado como “Santo” pela população. Seu túmulo ainda recebe inúmeras visitas de pessoas que acreditam que pelo que Anthero passou, tornou-se “Santo”. Há relatos de que algumas pessoas chegam a comparar seu martírio com o de Jesus Cristo.
Entre os escritos a respeito de sua vida e morte, o mais recente data de agosto de 2012, do autor catalano Luiz Righetto, com o título “O Mártir do Catalão”, uma das obras em que se embasa este estudo.
Segundo Luiz Righetto (2012, p. 17-19), Anthero, o terceiro filho do casal Joaquim Brandão e Balbina Maria, nasceu no município de Jataí, no dia vinte e dois de julho do segundo ano do século vinte.
Narra o referido autor que Anthero nasceu em família simples, sem muitas posses. Seu pai trabalhava na intendência como agente de rendas do município e, sua mãe dedicava-se aos trabalhos domésticos e aos filhos. Anthero era o único filho dos três que o casal tinha, por isso, já na adolescência trabalhava como balconista no armazém de secos e molhados do senhor Abud.
Continua citado autor informando que, depois da morte do pai, Anthero passou a ser o responsável por sua mãe e pela manutenção de sua casa. Trabalhava com afinco no armazém durante o dia e parte da tarde numa farmácia. E, em busca de melhores oportunidades, Anthero e sua mãe mudaram para Campo Grande – MS.
Em Campo Grande, conheceu Amélia e com ela viveu maritalmente, e por motivo de perseguição política, se viu obrigado a fugir para a cidade de Catalão – GO, terra natal de Amélia. O casal e os dois filhos de Amélia chegaram a Catalão na primeira semana de fevereiro de 1933. (RIGHETTO, 2012, p.60)
De acordo com Cornélio Ramos (1972, p. 35), em Catalão, Anthero se dedicou a diversas atividades, chegou a ser titular do Cartório de Registro Civil, ajudou a fundar e manter jornais, escreveu um livro de poesias e montou uma farmácia.
Em pouco tempo Anthero tornou-se popular na cidade, talvez devido ao seu carisma ou em razão de ter sido um homem generoso, que, várias vezes, atendeu gratuitamente em sua farmácia pessoas que não tinham condições de pagar pelos remédios e atendimento. (RIGHETTO, 2012, p. 62-100)
Anthero mantinha um bom relacionamento com todas as pessoas da cidade, fosse pobre ou rico ele tratava da mesma forma. Assim, era amigo de pessoas influentes na cidade, de coronéis da época e também de ricos fazendeiros, bem como de pessoas simples e com menor condição financeira. Por isso, em pouco tempo, Anthero passou a ser visto como ameaça para muitos políticos da época. (RIGHETTO, 2012, p.70-101)
Em maio de 1934, Anthero conheceu o fazendeiro Albino Felippe do Nascimento e sua família. A partir deste momento mantiveram uma amizade muito próxima e foram compadres duas vezes. E, por conta dessa amizade, Anthero ampliou seus negócios, tornou-se sócio de Albino Felippe em negócios de compra e venda de arroz, feijão etc. (RIGHETTO, 2012, p.71-77)
No dia 26 de maio de 1936, o fazendeiro Albino Felippe do Nascimento foi assassinado com tiros de emboscada, na chamada “Pedra Preta.” O crime causou repulsa na população e vários comentários surgiram. Na época, as autoridades tentaram elucidar o caso e, em meio a várias dúvidas e comentários maliciosos, o primeiro a ser tido como suspeito foi João Albino, filho de Albino Felippe. (RAMOS, 1972, p. 44-45)
João Albino foi preso e, segundo Ramos (1972, p. 45) teria sofrido várias modalidades de tortura na prisão. Queriam que ele confessasse o crime, que dissesse que o cometeu para ficar com a herança. Entre as várias torturas, arames farpados foram arrochados em sua cabeça, espetaram-lhe farpas de bambus sob as unhas das mãos, mas João Albino resistiu.
FOTO: Tenente Queirós e o soldado Jorge acompanham João Albino
Sem alternativa, as autoridades tiveram que colocar João Albino em liberdade. E, em outra diligência, os policiais prenderam um famoso jagunço, apelidado de Chico Prateado, que teria sido contratado para cometer o crime. É neste momento que surge o nome de Anthero como mandante. (RAMOS, 1972, p. 45-46).
Informa Righetto (2012, p. 151- 152) que foi o próprio coronel Luiz Sampaio que indicou Chico Prateado como autor do crime e Anthero como o mandante, com fundamento em boatos de que Chico Prateado era matador profissional e “bate pau” de Anthero, que teria motivos suficientes para mandar matar seu amigo íntimo, pois este havia dado-lhe prejuízos em negócios. Ademais, o coronel aproveitou da situação para eliminar uma ameaça, vez que Anthero era um galanteador, sempre aparecia limpo e perfumado, arrancando suspiros de solteiras e mesmo de casadas e, além disso, era um homem bem visto e influente na cidade, que estava incomodando muito e poderia futuramente até lhe retirar as rédeas do poder.
Assim, o coronel e seu filho Diógenes Sampaio, sem medirem as consequências de suas atitudes, ordenam ao delegado Francelino Franklin Ferreira que investigasse Anthero da Costa Carvalho. Mas, o delegado rebateu de imediato as novas suspeitas, afirmando que conhecia Anthero e não acreditava em sua culpa, que sabia de seu trabalho como farmacêutico, da forma amigável e solidária com que tratava as pessoas, doando remédios, consultas e alimentos aos mais necessitados. Termina dizendo que atuaria em prol da justiça, mas que não incriminaria ninguém sem nenhuma prova contundente. Tal atitude deixou pai e filho visivelmente aborrecidos. ((RIGHETTO, 2012, p.152-154)
Nomeado pela Secretaria de Segurança do Estado, chega à cidade o tenente José Francisco Póvoa e, com a fama de nunca ter deixado um caso sem solução, assume o posto de delegado especial. Ao conversar com Diógenes Sampaio, este lhe deu um norte a seguir. Sua primeira ordem foi que prendessem Chico Prateado, mas que ninguém deveria ficar sabendo que o manteria na prisão, se os praças ou qualquer funcionário da delegacia contassem que Chico Prateado estava preso, seriam punidos severamente. (RIGHETTO, 2012, p.155-158).
Durante a investigação, o delegado inquire várias testemunhas, entre elas, os filhos de João Albino, a viúva de Albino Felippe e Amélia Nazar companheira de Anthero. Durante a inquirição, tenta induzir as testemunhas em suas declarações, indagando se Anthero era amante da viúva, se realmente era amigo de Albino e se sabiam ser Anthero devedor de alguma quantia a vítima. Sem respostas frutíferas ao seu intento de incriminar Anthero, o delegado resolve formar a culpa de outra forma. (RIGHETTO, 2012, p.159-171)
Após aplicar terríveis seções de tortura em Chico Prateado, as quais eram ouvidas por quase toda a cidade, vez que os gritos do preso ressoavam assustadoramente, o delegado conseguiu a seguinte confissão:
[…] disse que sem constrangimento algum, espontaneamente queria confessar sua autoria no crime de homicídio, praticado na pessoa de Albino Felippe do Nascimento, e assim fazer uma exposição detalhada da sua culpabilidade no aludido fato na forma que se segue. Que a cerca de três anos vem residindo nesta cidade na companhia de sua mãe, que durante todo esse tempo tem se ocupado em agenciar serviços de viagem […] que durante todo esse tempo procurou proceder bem, de modo a captar a confiança das pessoas para quem trabalhava, e que assim sendo, nunca teve vontade de praticar qualquer acto reprovado, mesmo porque desejava evitar dificuldade com as pessoas que tão bem o haviam acolhido, que desde o ano de mil novecentos e trinta e quatro, na época em que houve eleições nesta cidade, foi que ficou conhecendo Antero da Costa Carvalho como pessoa de certa influência no movimento que então havia para a preparação das eleições […] que dentro deste um ano a esta parte o declarante confessa que Antero de Carvalho vem sendo muito bom para ele, fazendo-lhe muitos favores, de modo tal a adquirir a gratidão do declarante, que Antero desde que chegou a esta cidade tem se preocupado também em fazer tratamento a doentes […] que assim sendo Antero fornecia todas as vezes que era necessário ao declarante e sua mãe, remédios, digo tratamentos, sem nunca lhe haver cobrado para esses serviços, que o declarante às vezes fazia algumas viagens para Antero e este sempre lhe gratificou generosamente, que por esta forma ficou o declarante a dever a Antero grandes obrigações de maneira que o declarante já se sentia sem coragem de recusar qualquer proposta que lhe fizesse Antero […], que certa vez Antero propôs ao declarante a empreitada de ir a cidade de Anápolis afim de praticar o assassinato de José Quinam, marido de Amélia Nazar e pai de Cecílio e de outra filha de Amélia, de quem o declarante ignora o nome, que o declarante ficou indeciso em dar a Antero uma resposta positiva sobre esse serviço que lhe fora proposto, ficando os entendimentos a respeito para ocasião mais oportuna conforme o entender de Antero, que continua ainda o declarante a frequentar a casa de Antero, e foi então que mais ou menos em quinze de março deste ano Antero lhe propôs a empreitada de matar Albino Felippe do Nascimento, que o declarante sabia que Antero mantinha estreitas relações com Albino, pois este todas as vezes que vinha à esta cidade apeava e ficava sempre em casa do referido Antero, que quando Antero propôs ao declarante que matasse Albino, ficou o declarante muito admirado daquela resolução e indagando a Antero qual o motivo que tinha para isso, explicou-lhe este que era devido a complicações de negócios, nos quais Albino estava lhe dando prejuízo de 8: 500#000 mil réis, que em meados do mês de maio deste ano Antero marcou ao declarante o dia em que devia ir esperar Albino a fim de cometer o crime, que quando Antero lhe propôs pela primeira vez a empreitada de matar Albino o declarante pediu-lhe um pagamento de 5:000#000 de réis, dando assim um preço mais alto para ver se Antero achava caro e desistir de mandar fazer o serviço, que Antero ponderou então ao declarante que muito se admirava de lhe ser pedido o pagamento de tão elevada quantia, porquanto ele, Antero já lhe tinha feito muitos favores e não esperava que o declarante lhe criasse dificuldades, que então o declarante respondeu-lhe que faria o serviço não por interesse mas sim pelos favores que ele devia a Antero, que este lhe propôs que pagaria 2.000#000 de réis e marcou o lugar em que devia matar Albino, lugar esse que seria na “Pedra Preta” […] que não sabia bem onde é que Antero desejava fosse cometido o crime, que por esse motivo Antero lhe disse que o local teria de ser onde o declarante encontrasse um pau lavrado com canivete e onde tivesse também os riscos, que esse sinal foi feito pelo próprio Antero alguns dias antes do crime […], o declarante foi se postou no lugar indicado, pois Antero havia dito ao declarante que praticasse o crime não se importando com a presença das mulheres que iam em companhia de Albino, […] que as quais o que poderiam fazer seria apenas gritar, certamente não iriam olhar quem havia dado o tiro, que assim sendo o declarante mais ou menos ao meio dia dirigiu a cavalo para o local tendo antes de chegar lá, desarreado o seu animal soltando-o no cerrado, e escondendo o seu arreio numa moita, que colocando-se no lugar da tocaia marcada por Antero, pouco depois das quatro horas da tarde vieram se aproximando pessoas a cavalo, as quais o declarante reconheceu ser Albino Felippe, sua mulher e Amélia Nazar, que no momento em que os animais que vinham mais ou menos juntos, estavam para passar me frente ao local onde se achava declarante em tocaia, Amélia Nazar adiantou-se um pouco, deixando atrás a curta distancia Albino e sua mulher, que o declarante apesar de se achar ali para atirar em Albino, perdeu a coragem de fazê-lo, visto haver ficado penalizado de matá-lo naquele momento em que vinham, digo, vinha com sua mulher a qual trazia consigo uma criança, que assim sendo o declarante deixou que Albino passasse em paz, voltando ele o declarante aqui para a cidade, […] que depois disso Antero mandou chamar o declarante várias vezes por intermédio de Cecílio, e insistia que fosse fazer o serviço dizendo-lhe mais, que o declarante estava ficando muito mole, que depois de muitas insistências Antero conseguiu com o declarante para fazer o serviço, e recomendou-lhe que no dia vinte e seis de maio próximo passado, fosse bem cedo para a tocaia combinada, pois neste dia Albino viria a esta cidade, e ele Antero iria fazer uma viagem a Ouvidor e recomendou também que não matasse Albino na sua vinda para a cidade pois vinha ele trazer 4:500#000 mil réis para Antero e que só na volta é que Albino deveria ser morto […] que por volta das quatro ou cinco horas da tarde do mesmo dia o declarante da moita onde se achava percebeu que vinha se aproximando um cavaleiro do lado da cidade, que logo reconheceu que o cavaleiro era Albino Felippe, e como o declarante já se achava de prontidão com um revólver calibre 38 em punho, no momento que Albino defrontou o declarante, este desfechou à distância de seis metros um tiro, fazendo a pontaria no pé da orelha, que esse tiro atingiu Albino na nuca, e com elle a mula em que montava Albino assustou e correu para a frente com Albino ainda em cima, que poucos metros adiante Albino caiu do animal ao chão ficando em posição assentado na areia e gritou alto pelo nome de João, que o declarante caminhando agachado um pouco para a frente, desfechou mais um tiro do lado esquerdo em Albino, alvejando-o no peito, que com esse tiro Albino deitou-se no chão, retirando-se o declarante do local […] (RIGHETTO, 2012, p.211-218)
Ao se analisar o depoimento de Chico Prateado percebe-se várias confusões e contradições. Suas declarações indicam claramente que tudo foi imposto, isto é, deveria contar uma história criada pelo delegado, devendo decorar tudo, mas várias vezes deixa transparecer que a construção da história é amadora.
Vê-se que, forçosamente, o delegado tentou qualificar Antero como criminoso “profissional” quando Chico Prateado relata que Antero já havia tentado contratá-lo em empreitada para matar o marido de sua companheira Amélia Nazar. Mas, tal relato não tem seguimento coeso, dizendo o declarante que não quis dar a resposta imediata e deixou a cargo do entendimento de Antero. Ora, se Chico Prateado fosse mesmo um matador de aluguel não iria recusar serviço, deixando passar a oportunidade de obter alguma vantagem.
Outro ponto controvertido é quando Chico inicia o depoimento dizendo que era homem trabalhador e que não queria fazer nada de desonroso numa cidade em que o povo o acolheu tão bem e que apenas trabalhava de forma honesta. Depois, diz que aceitou fazer o serviço para Antero em razão de este ser um homem bom e, por várias vezes, ter atendido a sua mãe sem cobrar coisa alguma e que, além disso, trabalhava para Antero e este lhe gratificava generosamente. Neste ponto, indaga-se: qual homem de boa índole, trabalhador e desejoso de ser bondoso com o povo que o acolheu, seria forçado a cometer o crime de homicídio por dever alguns favores a alguém? Ademais, em seguida no seu depoimento ele afirma o valor que teria cobrado pelo serviço, deixando a dúvida se ele teria feito o serviço pelo dinheiro ou por gratidão, como afirmou.
Afirmou o declarante em seu depoimento que Antero teria encomendado o crime em razão de a vítima ter lhe dado prejuízos nos negócios. Que teria o declarante feito uma primeira tentativa frustrada, na qual teve pena de matar Albino na frente de sua esposa, que estava com uma criança. O mais esdrúxulo neste ponto do depoimento é quando ele afirma que soltou o cavalo e escondeu o arreio em uma moita. Ora, um matador profissional, tido como forasteiro, teria tão pouca esperteza, eliminando sua possibilidade de fuga rápida, deixando vestígios do crime, vez que ele era conhecido como Chico Prateado justamente pelos apetrechos utilizados no animal? Além do mais, depois do crime ele imaginou que fugiria a pé, carregando o arreio nas costas? (RIGHETTO, 2012, p.219)
Disse também o declarante que Antero teria marcado o local da tocaia com riscos, marcas feitas com o seu próprio canivete. Que Antero encomendou uma segunda tentativa e que esta deveria ser realizada no fim do dia, pois Albino iria à cidade pagar-lhe uma dívida. Questiona-se a que ponto Antero teria perdido a lucidez e a inteligência, realizando tal ato, marcando o lugar da tocaia de forma tão primária para um jagunço. Além disso, se Antero teria encomendado a morte de Albino em razão de ter sido prejudicado financeiramente, porque assinalou para Chico Prateado realizar o crime antes da data da segunda tentativa, se naquele momento ainda não teria recebido de Albino o dinheiro mencionado que receberia na manhã da data do ocorrido?
Estranhamente, o declarante informa que quando estava de frente com a vítima mirou-lhe ao pé da orelha (talvez não quisesse realmente matá-lo) e que, note-se a falta de coerência: estando frente a vítima, acertou-lhe um tiro na nuca!
Righetto ressalta que outra informação incoerente é quando em seu depoimento Chico Prateado relata que depois desse tiro na nuca, a mula em que estava a vítima e assustou e logo à frente derrubou Albino, momento em que ele se aproxima da vítima caminhando agachado um pouco para a frente, desfechando mais um tiro do lado esquerdo em Albino, alvejando-o no peito e que com esse tiro Albino deitou-se no chão. Tal relato deixou claro que o delegado não teria lido o laudo médico, o qual esclarece que:
[…] o tiro partiu de frente e com certeza de alguém que era bem conhecido da vítima, visto não ter a vítima se assustado a primeiro momento e o mesmo criminoso mostrando ter pouca intimidade com a arma, atira, mas o tiro passa de raspão acima da orelha, atingindo superficialmente a região occipital […] E ele, o assassino covarde, alcança a vítima, caminhando alguns metros à frente e agora de frente para ele caído no cascalho fino, com a mão esquerda sobre o ferimento na cabeça, faz o segundo disparo, acertando o braço esquerdo, mas o projétil atravessando o músculo do bíceps, penetra no peitoral, atingindo fatalmente o coração. (RIGHETTO, 2012, p. 221)
Outrossim, fica evidenciado que o assassino não tinha nenhuma intimidade com uma arma de fogo, visto que teve duas oportunidades e não conseguiu nenhum tiro certeiro, como conseguiria nestas condições um jagunço acostumado com esse tipo de serviço.
Continua esclarecendo Righetto (2012, p. 221- 222) que o declarante, mesmo estando investido na tocaia, por volta das quatro horas da tarde, soube detalhar para o delegado a hora exata em que Antero teria chegado de viagem, afirmando que seria por volta das quatro da tarde, tendo passado em sua casa à sua procura.
Note-se que, segundo o autor supramencionado, o depoimento foi assistido por duas testemunhas e pelo promotor de justiça, causando estranheza que nenhum deles tenha percebido todos esses pontos confusos no relato de Chico Prateado.
Neste ínterim, faz-se salientar que mesmo antes de ouvidas as declarações de Chico Prateado, com a presença de testemunhas e do promotor de justiça, Chico Prateado e Anthero já estavam presos, de forma arbitrária, sem mandado judicial, muito menos sem provas cabais de culpabilidade. Estavam os dois à mercê do delegado e dos policiais, os quais lhes aplicavam terríveis sessões de torturas em que os gritos eram ouvidos em toda a cidade. Mas, o delegado com muita esperteza tratou para que ficasse registrado no Inquérito Policial que os dois suspeitos teriam ido à delegacia voluntariamente prestar as declarações e confessar a autoria no crime. (RIGHETTO, 2012, p. 204-241)
Conta Righetto (2012, p. 223-242) que Anthero teria sofrido muitas torturas na prisão, sendo privado até mesmo de alimentação para que confessasse a autoria como mandante do homicídio contra Albino Felippe. Sendo que após todo esse processo de tortura, o delegado teria conseguido duas confissões de Anthero, sendo a primeira sem muitos detalhes, mas tendo conseguido o delegado “arrancar” de Anthero uma segunda confissão em que apontava detalhes de como teria contratado o assassino e qual o motivo de ter encomendado a morte de Albino. Mas, destaca a incoerência entre as declarações de Chico Prateado e Anthero, constatando vários momentos em que as informações são desconexas, confusas, sem nexo, com palavras soltas e sem sentido, apontando para o fato de terem sido construídas pelo delegado e serem desconstituídas de veracidade, tendo sido conseguidas a custo de muita brutalidade e abuso de poder.
Assim, após toda esta simulação, o delegado solicita a prisão preventiva dos acusados, o que lhe é concedido. (RIGHETTO, 2012, p. 226-227). Em razão de ter cedido às torturas e confessado a autoria como mandante do crime, Anthero passa a ter “melhores condições” na prisão, podendo receber visitas e alimento. Mas, Anthero, prevendo o futuro, escreve uma carta à sua mãe com o seguinte teor segundo Righetto (2012, p. 254-272):
[…] com certeza, mãezinha querida, quando a senhora estiver lendo esta carta, eu não estarei mais aqui entre os da Terra, com a certeza da minha inocência, e peço, de joelhos, que me perdoe por tê-la deixado, beijo-lhe as mãos, pedindo que me abençoe. Seu filho amado. Anthero.
O LINCHAMENTO DE ANTHERO DA COSTA CARVALHO
No dia 16 de Agosto de 1936, Catalão foi palco de um crime brutal e covarde. Uma multidão invadiu a cadeia local e retirou o jovem Antero da Costa Carvalho, à época com 34 anos de idade, preso acusado pela morte de Albino Fellipe e, numa atitude sanguinária, o torturou violentamente pelas ruas da cidade até a morte.
Segundo Ramos (1972, p. 46-48), tudo foi previamente preparado. A cela foi aberta e o jagunço Chico Prateado foi escoltado por outro jagunço até as margens do Paranaíba, com ordens de que deveria desaparecer e manter-se calado. Anthero, mesmo estando na cela com as grades apenas cerradas, não quis fugir, por acreditar que em algum momento conseguiria provar sua inocência.
Salienta-se que, de acordo com o depoimento do Senhor Nazú da Cunha (1969, p. 6-7), houve uma primeira tentativa de retirar Anthero da cadeia, tendo essa sido frustrada devido Anthero e Chico Prateado terem sido retirados da prisão antes da chegada do bando. Até os dias atuais não há justificativa porque foram retirados da prisão naquela primeira tentativa e não foram transferidos para Goiânia, a fim de evitar o linchamento. Especulou-se que queriam preservar a vida do jagunço Chico Prateado.
Righetto (2012, p. 275-276) também informa que houve uma tentativa sem êxito em retirar Anthero da cadeia, sendo que sabedores de rumores de que ocorreria uma segunda tentativa, os policiais e políticos da época nada fizeram para salvar a vida de Anthero. Na verdade, os relatos apontam que os mentores de toda a maldade sofrida por Anthero foram os coronéis da família Sampaio, especialmente João Sampaio, por motivos que serão detalhados em momento oportuno.
Ramos (1972, p. 47-48) relata como ocorreu o linchamento de Anthero:
[…] Em Catalão. Antero permanecia em sua cela, apesar de estar a mesma com a porta apenas cerrada. Percebeu o perigo que corria, mas, tinha a consciência tranquila confiava na sua inocência, era corajoso e não queria comprometer-se fugindo da prisão. A verdade talvez fosse sua conhecida, na hora oportuna tudo se esclareceria, era o que pensava… Um grupo de homens, numeroso e sanguinário, adredemente orientado, já na boquinha da noite, invadiu a cadeia e de lá foi arrancando o inocente poeta, sem nenhuma oposição. Amarraram-lhe uma corda ao pescoço, ataram suas mãos para trás e o levaram pelas ruas aos empurrões, sem permitir-lhe que falasse, atravessaram uma fina faca em sua língua e lá foram com o indefeso moço aos trambolhões, matando-o aos pouquinhos, espetando-lhe a cada passo a ponta de uma faca em toda parte do corpo, nos olhos para não enxergar, nos braços atados, nas pernas, no ventre, nas costas, no peito, no rosto, para o fazer sofrer bastante. Depois de receber mais de uma centena de facadas o homem continuava ainda andando, arrastado, aos empurrões, como uma ferida viva, sangrando da cabeça aos pés. Depois de percorrer perto de um quilômetro e ter sido torturado por mais de uma hora ao sabor da turba possessa e selvagem, o homem caiu pela última vez, no final da rua, já na saída para Goiandira (onde mãos piedosas erigiram uma capelinha em sua homenagem). Sem forças para levantar-se, continuou ali a ser picado por facadas, até que um dos verdugos, num golpe de misericórdia, acabou com seu sofrimento, varando de uma vez o seu coração com uma comprida faca de aço. Terminado o linchamento restava comemorar e festejar com bebidas e acrobacias equestres. Os criminosos montados nos seus cavalos, jogavam-se sobre o cadáver acompanhados da gargalhada da tuba; os cavalos entretanto, refugavam ou saltavam o corpo do mártir sem tocá-lo. E o festim prosseguia noite afora, com tiros e correria de cavaleiros embriagados pelas ruas da cidade.
FOTO: Prédio da cadeia onde ficou Anthero da Costa Carvalho
De acordo com Righetto (2012, p. 280-281), um arame farpado foi colocado na cabeça de Anthero, o qual era apertado com uma torquês. Até os dias atuais, os relatos de como ocorreu o linchamento de Antero emocionam e chocam pela grande brutalidade do ato.
O Senhor Nazú da Cunha (1969, p. 5-10) conta que tudo foi programado e dias antes foram feitos ultimatos a vários homens para que o bando fosse formado. Tudo teria sido preparado por João Sampaio, Luiz Sampaio e Diógenes Sampaio, tendo a chefia ficado por conta de João Sampaio. O senhor Nazú informa ainda que, naquela época, quem mandava e desmandava na cidade era a família Sampaio, que os mesmos, por meio de uma política tirana e coronelista, comandavam a cidade há mais de 10 anos. Possivelmente, a morte de Antero teria sido providencial, para neutralizar uma possível ameaça política. Diziam que Anthero era um homem que “sabia demais.”
De acordo com Maria do Rosário de Mello (1999, p. 21), Antero era muito conhecido e querido pela população, tornando-se alvo fácil daqueles que temiam perder seus postos no poder, pois se cogitava a ideia de Antero ser candidato a prefeito.
Continua a autora informando que outra justificativa dada ao linchamento de Antero era o fato de ele ter sido colocado como mentor da morte de Albino Fellipe, o qual era muito querido pela sociedade, causando grande repulsa na população. (MELLO, 1999, p. 21)
Sobre o poder coercitivo de João Sampaio, Mello (1999, p. 24-25), a partir de algumas entrevistas com pessoas da cidade que tinham conhecimento sobre o caso, relata que quando o nome de João Sampaio era pronunciado, as pessoas ainda aparentavam receio em contar o que sabiam. Alguns, disseram que João Sampaio era um homem mal, que usava sempre de muita violência para conseguir o que queria. A autora reforça que a família Sampaio, principalmente João Sampaio e Diógenes Sampaio, não hesitava em recorrer à violência e à traição para conseguir se manter no poder, impulsionados por uma ambição desmedida.
De acordo com Ramos (1997, p. 108), o prefeito da cidade, à época, teria saído ao alpendre para contemplar o espetáculo, ficando estarrecido quando Antero lhe pediu socorro, voltando para o interior de sua casa por faltar-lhe autoridade e força para intervir. Fica, assim, evidente a força de comando que possuía a família Sampaio na cidade naquele tempo. Entretanto, independente dos motivos, Anthero foi vítima de uma barbárie, de um povo que estava acostumado a resolver tudo por meio da violência, sem princípios humanos.
Conta o Senhor Nazú (1969, p. 11) que foi enorme a brutalidade, ficando o corpo tão mutilado que para ser lavado e vestido, tiveram que enchê-lo de algodão para tomar forma novamente. Curioso é que, no atestado de óbito de Antero (em anexo) ficou registrado que a morte se deu por ferimentos produzidos por arma branca.
Anthero foi sepultado no cemitério municipal, tendo sido acompanhado por uma multidão, todos silenciosos e estarrecidos com o acontecido. Até os dias atuais seu túmulo é muito visitado pela população, sendo que as armas com as quais foi torturado até a morte foram penduradas na cruz em seu túmulo. O que Anthero sofreu, a sociedade comparou com o sofrimento de Cristo e muitos acreditam que Anthero teria se santificado e realizado vários milagres. Essa construção no imaginário popular serve para reforçar a grande violência sofrida por Anthero.
FOTO: Túmulo de Antero no dia 2 de novembro de 2015 – Foto de Badra Abrão
FOTO: Momento da entrevista sobre a peça teatral “Antero” em 29 de agosto de 2013… Da direita para esquerda: Evandro Costa, Rodrigo de Oliveira, Maysa Abrão e Haroldo Maia
À luz de Mello (1999, p. 30-31), percebe-se que Antero viveu numa época em que na cidade era muito comum as pessoas fazerem “justiça” com as próprias mãos, vários crimes aconteceram naquela época, mas, o crime de Antero possui a singularidade de ter sido um espetáculo com data, hora e local previamente marcados. Provavelmente, com o objetivo de coagir as pessoas à obediência e também reforçar a abrangência da coerção do grupo dominante e mandante do crime.
Segundo Ramos (1972, p. 48), Antero foi vítima de uma era de truculência e injustiça, hoje ultrapassada, mas, “cujas cicatrizes ainda perduram a assinalar como uma mácula o passado de uma bela e hospitaleira cidade.”
Os anos trinta em Catalão foram marcados por grande violência, alimentada pela impunidade. E, é nesse contexto de violência que se deu o homicídio de Antero, o qual permaneceu impune, não sendo responsabilizados os criminosos, muito menos revelado o verdadeiro motivo de sua morte. (MELLO, 1999, p. 36-42)
FOTO: Certidão de Óbito de Anthero da Costa Carvalho
FOTO: No local em que Anthero caiu morto na noite do dia 16 de agosto de 1936 foi construída uma capelinha em sua homenagem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
RAMOS, Cornélio. Catalão: poesias, lendas e história. 3ª ed. Catalão: Gráfica e Editora Modelo, 1997.
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