Caetaninha do Rio Verde por Cornélio Ramos

“O delegado de polícia de Catalão recebeu das mãos do jagunço um embrulho de pano manchado de sangue e um tanto espantado indagou: – O que é isso, Procópio?…
… É as farda dos sordado qui vossamecê mandô pá prendê a Sinhazinha… Eles ficaro interrado sem ropa lá mesmo no arraiá…”
Pouco tempo depois da elevação à cidade, no ano de 1859, Catalão tornou-se sede de vários distritos, entre os quais Santo Antônio do Rio Verde, povoado que nasceu na mesma época da sede e espargia acentuada importância na escalada para Barretos, no estado de São Paulo, como ponto de pousada para os comerciantes de gado que vinham cavalgando, acompanhando suas boiadas, procedentes quase sempre de Formosa dos Couros, no sudeste goiano, ou de Paracatu, no estado de Minas Gerais, com passagem obrigatória por Santo Antônio do Rio Verde, onde pernoitavam tanto na ida como na volta.
Naquela época, Padre Luiz da Costa era o vigário da paróquia e, para dar assistência espiritual aos distritos, viajava regularmente em seu vistoso cavalo, acompanhado por Pedro Lira, seu serviçal e também sacristão. Todas as primeiras sextas-feiras de cada mês ia para Santo Antônio do Rio Verde, onde passava o fim de semana fazendo batizados, casamentos e orientando e aconselhando os paroquianos. Ali, hospedava-se na pensão de Caetaninha, dirigida por Ernestina, filha de “Seu Caetano”, que era viúvo e, quando não estava jogando cartas, cuidava de negócios de gado. Deixava a hospedaria por conta da filha, bela, jovem, ativa e insinuante. Sabia atrair para sua casa selecionada freguesia.
“Seu Caetano”, quando estava no povoado, transformava a hospedaria da filha num pequeno “cassino”, passando dias e até noites inteiras jogando cartas com amigos, conhecidos e viajantes, atraídos não só pelo jogo, mas também pela cordialidade e carinho com que eram tratados pela gerente da casa, às vezes ajudada por outras mulheres que com ela se associavam para bem servir os jogadores.
“Seu Caetano”, além de lucrar bastante como bom jogador que era e como bancador do jogo, ainda retirava de cada rodada uma porcentagem, denominada “barato”, para custeio da banca, que servia com generosidade: bebidas, café, chá, bolinhos fritos e outras guloseimas, associados ao bom trato da casa. Com isso, levava uma boa vantagem…
Tinha Caetaninha vários namorados que morriam de amores por ela, mas firme mesmo só o Severino, mais idoso, mais pacóvio, e que, por isso mesmo, lhe servia bem, não se importando muito com suas leviandades, aceitando passivamente todos os seus caprichos.
Padre Luís, como outros vigários da época, não levava muito a sério a castidade recomendada pela Igreja, e fora dela portava-se como um cidadão comum, aproveitando parte do tempo em folguedos, em companhia de outras pessoas, especialmente mulheres e preferencialmente Caetaninha, pela qual nutria preponderante afeição.
Em suas repetidas viagens a Santo Antônio do Rio Verde, seu relacionamento com a jovem sedutora pensionista se aprofundou em demasia, até que ela percebeu ter se engravidado, fato que afastou em definitivo o vigário do vilarejo e apressou o casamento de Caetaninha com o Severino.
Quando nasceu o filho, bem aceito pelo marido, deram-lhe na pia batismal o nome de Urias.
Outros filhos vieram depois: Seu Inhô, Seu Bem e Francisco da Caetana, formando os quatro, depois de crescidos, a temerosa escolta de Ernestina Caetano.
Insinuante, bela, maquiavelicamente ardilosa, jogueteou por muitos anos com a sorte, jogando-se em aventuras romanescas, aliciando comerciantes de gado que faziam escala em sua pensão, conquistando fazendeiros e velhos coronéis da política de outrora, sob os olhos complacentes do marido. Esnobava riqueza, vestia-se com elegância e exagerava no uso de jóias, brincos, anéis, pulseiras e longos colares com grandes pontas, tudo de ouro puro, chegando a chamar a atenção da comunidade que, com certa malícia, dizia estar ela com o pescoço torto devido ao peso de tanto adorno.
Ilustração de Del Bianco para a “Voz do Sudoeste”
Viveu assim, faustosamente, por muito tempo, até que perdeu o pai, perdeu amigos, perdeu a fascinante juventude, e, envelhecida, sem a primitiva beleza, sem mais os atrativos físicos dos quais tanto se envaidecia, inconformada com o progressivo declínio da fortuna, continuou ainda com suas artimanhas, apelando em último recurso para a violência, usando os quatro filhos para intimidar os antigos amantes que dela procuravam fugir.
Com o correr do tempo, os filhos, estimulados pela mãe e premidos pelas circunstâncias, tornaram-se temíveis aventureiros a serviço de Caetaninha, na prática de vários atos delituosos. O mais temido era Urias. A escolta era ainda reforçada de vez em quando por outros jagunços, preferencialmente o Procópio, pistoleiro frio e obediente.
Quando os gêneros de primeira necessidade começavam a escassear, dificultando a manutenção daquele grupo de sinecuras, mandava ela um recado a um dos fazendeiros de sua antiga amizade: – “Minha despensa está vazia mande-me alguma coisa, já!…”
O aviso surtia efeito, e logo um carro de bois estaria rabeando na porta de seu casarão: um capado gordo, sacos cheios de feijão, arroz, milho e outros suprimentos eram descarregados.
Sua vida sentimental, sua intima satisfação, seus caprichos teriam também que ser satisfeitos, e quando isso lhe era negado, algum cadáver aparecia na margem da estrada sem que ninguém ficasse sabendo por que e por quem…
Às vezes, cabeças de gados desapareciam dos pastos sem que os fazendeiros pudessem recuperá-las, mesmo sabendo por quem; por temor ou comprometimento.  Comerciantes de gado, com seu dinheiro, sumiam, quando em regresso de Barretos para Formosa ou Paracatu… Sumiam misteriosamente!
Esse clima de desassossegante mistério e medo passou a aterrorizar a região.
Quem estaria por detrás de tudo isso?…
Fundamentadas suspeitas recaiam sobre Caetaninha e seu grupo, mas ninguém tinha coragem para enfrentá-la.
Quando Jerônimo Co-Có, (Jerônimo Antônio), pessoa largamente estimada, apareceu morto na estrada de sua fazenda, com o corpo varado por balas de carabina, os ânimos se exaltaram. Não era possível suportar por mais tempo.
– Nós, ou ela!…
Era o protesto unânime do povo.
A única tentativa feita pela polícia de Catalão para liquidar com o bando resultou no diálogo do início dessa história, ou seja, no massacre dos soldados encarregados da diligência!
Davi Co-Có, irmão de Jerônimo, resolveu pôr fim nos desmandos atribuídos aquela terrível e impiedosa mulher, disposta a todos os desatinos quando era contrariada.
Pensou em organizar os moradores da região para um assalto ao famoso casarão de Rio Verde e liquidação da mulher e seu grupo de celerados. Aconselhado, todavia por pessoas sensatas e políticos locais, achou prudente ir à velha capital de Goiás, expor tudo e, munido de valiosas recomendações escritas de políticos influentes, exigir radicais providências das autoridades; assim fez e aproveitou a oportunidade para alardear uma iminente amotinação do povo com imprevisíveis consequências.
As autoridades já conheciam o comportamento criminoso de Caetaninha e seus asseclas, entretanto, sendo ela acobertada pela proteção de alguns políticos com ela comprometidos, ficavam impedidas de uma ação mais energética e saneadora. Com o agravamento dos acontecimentos e o empenho de importantes políticos de Catalão para o extermínio daquele poço de inquietação, resolveram as autoridades tomar uma providência enérgica para liquidar de vez com o bando.
Uma escolta de soldados escolhidos e comandados por um furriel foi enviada a Catalão, donde, depois de bem orientada, acompanhada pelo próprio Davi Co-Có, seguiu para o distrito.
Caetaninha foi avisada pelos seus espiões, reforçou seu grupo para o entrevero e aguardou resoluta a chegada dos milicianos.
Os militares chegaram ao amanhecer cercaram o casarão de Ernestina Caetano, mandaram uma intimação para que ela se entregasse sem resistência.
A intimação foi rechaçada, dando início à violento tiroteio. De um lado, dentro do antigo casarão, a Caetaninha com três filhos: o Urias, Seu Inhô, Seu Bem,  e ainda alguns jagunços bem armados; e ao redor, os policiais, suficientemente adestrados para fatídica missão, se posicionaram e aceitaram o desafio.
O previsto aconteceu, e com tanta violência que até hoje, decorrido mais ou menos um século, os habitantes da região ainda comentam aterrorizados o sangrento massacre!
Depois de frustradas algumas tentativas de invasão do prédio, conseguiram os policiais atingir mortalmente Seu Urias, o filho de dileto de Ernestina, um dos mais temidos e corajosos pistoleiros do sudeste goiano.
Diante da tragédia, a ardilosa mulher a custo conteve seu desespero, para em seguida planejar sua vingança.
Cessaram a resistência, simularam uma rendição acenando um lenço branco e quando conseguiram divisar ao alcance das carabinas o furriel comandante da escolta, alvejaram-no violentamente, prostando-o morto no terreiro.
Soltando um palavrão, numa gargalhada, fez explodir o seu ódio e festejou sua vingança.
FOTO: CHICO CAETANO
FOTO: OSÓRIO CAETANO 
*Escaparam do massacre Chico Caetano (Francisco Justiniano Mendes) por estar viajando, e Osorio Caetano, o menino que foi salvo do estripamento, graças a intervenção de David Co-Có.
A serpente sem a cabeça continuou, contudo, a se enroscar em sua vítima até estrangulá-la.
O cerco continuou cada vez mais feroz, até a invasão total do prédio e extermínio completo de seus ocupantes, com exceção apenas de Osório uma criança com menos de dois anos de idade, neto de Caetaninha, filho de Seu Inhô (Joaquim da Caetana), salvo com a intervenção de Davi Co-Có e um soldado mais moderado, que alegando o garoto não ter nada a ver com o que se passava, arrancaram-no das mãos dos demais soldados que queriam a todo custo jogá-lo para o ar e ampará-lo com a ponta do sabre, para acabar de vez com aquela raça!…
Findo o massacre, os policiais vasculharam todo o interior da casa. Surpresos, encontraram uma grande caixa de madeira com pesada tampa, dessas que os antigos usavam para guardar enxoval, mas, em vez de roupas, estava lotada de armas de fogo de vários tipos: rifles, mosquetes, espingardas polveiras, cartucheiras, carabinas, arcabuzes, revólveres, garruxas de calibres diversos, espadas, punhais, facas e até as armas dos três soldados ali sacrificados anteriormente numa infeliz diligência. Armas confiscadas de suas vítimas, armas deixadas como lembrança por pessoas de suas relações, pessoas que com ela conviveram ou se hospedaram em sua casa. Foi o que restou à polícia como troféu dessa batalha inglória; herança sinistra deixada por aquela funesta criatura!…
Por muitos anos permaneceu vazio e mal-assombrado o velho casarão. Quando foi demolido, contam que, em escavações realizadas no terreno onde existiu o prédio, encontraram ainda ossadas humanas, segundo afirmam velhos moradores da região, pertencentes às pessoas executadas pela mulher e seu bando, no interior da velha morada e sepultadas no porão. Pessoas que desapareceram misteriosamente, sem que ninguém ficasse sabendo como nem onde…
– E o Francisco, como ficou nessa história?…
– Ah!… Este escapou porque estava viajando, era ainda um adolescente. Depois de adulto, casou-se com Dona Leopoldina, viúva do irmão Joaquim, criou a família honestamente, tornou-se um homem de bem e famoso; dado ao seu temperamento folgazão, foi, na época em que viveu, um grande galhofeiro. Gostava de contar suas lorotas. Inventava coisas, blasonava suas caçadas de onças nas margens do rio São Marcos, onde sequer havia jaguatiricas. Falava de fabulosas pescarias nesse rio, afirmava seriamente ter ali pegado muito jaú a unha em local sabidamente pobre de peixes.
Certa vez, em uma roda de pessoas que adoravam ouvir as suas histórias, havia um viajante que ele era estranho; e para se enaltecer, caprichava em suas mentiras, provocando largas gargalhadas.
Em certo momento o Chico da Caetana deu uma de boiadeiro e afirmou que costumava passar sua boiada no porto Mão-de-Pau, sem pagar o imposto exigido na barreira. Levava uma vaquinha de presente para o fiscal e mais alguns agrados e estava tudo arrumado, passava a boiada no peito sem pagar nada…
Foi quando o viajante entrou na conversa na tentativa de frustrar o loroteiro:
– Esta história me agradou. Sabe com quem o senhor está falando?… Eu sou fiscal de rendas do Estado de Goiás e me interessa muito apurar fatos como este…
Sem perder a verve, Francisco retrucou:
– Pois não, mas… Sabe com quem o senhor está falando?… É com o Chico da Caetana, o maior mentiroso da Paróquia…
Deu uma risadinha sem graça e saiu de fininho, enquanto a turma desandava na gargalhada.
Cornélio Ramos – Histórias e Confissões.