A louca do Morro da Saudade por Cornélio Ramos

No tempo de antigamente, isto é, há uns 40 ou 50 anos atrás, o morrinho de São João jazia tranquilo, sozinho no meio da campina, sem o burburinho atualmente promovido pelo progresso, sem nenhuma casa em seu redor, somente a capelinha no seu cume e um grande cruzeiro de madeira bem em frente. As paredes da igrejinha viviam crivadas de letreiros amorosos, numa vã tentativa de eternizarem naquele extravagente registro os momentos felizes e encontros sentimentais ali vividos!… 

E, desafiando o tempo, lá está a poética ermida com seu exterior retalhado, golpeado por ferramentas cortantes para a gravação de legendas românticas e fantasiosas, frases reticentes seguidas de iniciais de namorados, bordadas com ternura, como a traduzirem os ardentes idílios que se desenrolaram… 

Na parede do fundo, dentro de um coração desenhado, rasgando o reboco, podíamos destacar uns versinhos caprichosamente gravados, mais ou menos assim: 
“A malva tem seis folhas, 
O alecrim dezesseis;
Ou me amas para sempre, 
Ou me deixas de uma vez”.
E por baixo a assinatura quase sumida – “Ritinha”. 
 
Naquela época, há já muitos anos, eu e um amigo, depois de uma divertida caçada de passarinhos pelos campos, demoramos algum tempo na casa de um sitiante nosso conhecido, onde jantamos. Quando nos dispusemos a regressar, já era bem tarde da noite. 
 
Acompanhando os trilhos no cerrado, resolvemos galgar o morro, com o propósito de contemplarmos, do alto, o casário branco da cidade que dormia tranquilamente ao pé da serra. Assustei-me, todavia, ao defrontar com espectral vulto de mulher, que, nos percebendo, ergueu-se do pé do rústico cruzeiro que ali se encontra, e, como um fantasma esbranquiçado, meio luminoso, começou a descer a colina…
 
Maquinalmente engatilhei a espingarda, tendo, nesta altura, sido detido por meu companheiro José Diogo: 
— Não atire! 
— Que será? — indaguei assustado. 
— Rita Pó… É a doida do morro. 
Da boca do meu amigo, fiquei então sabendo a triste história daquela infeliz mulher. 
 
Aquele namoro de Roberto com Ritinha Vieira já vinha dando o que falar. A viúvinha rica e ainda muito jovem sentia-se inquieta na valiosa fazenda de sua propriedade, situada nas proximidades do monte, até que ali um dia chegou, com seu gabinete, o dentista Roberto de Matos.
 
Pessoas da cidade advertiram-na do perigo daquele romance com um desconhecido. Poderia ser bom rapaz, mas quem sabe? Quem poderia assegurar ser ele solteiro e nutrir sadios propósitos a seu respeito?… 
 
Diziam ter vindo de Minas… Gente do mundo… 
Apesar de tudo, Ritinha apaixonara-se loucamente pelo odontólogo, amava-o com grande ardor e queria-o mais que tudo no mundo.
Roberto era um pouco tímido, fugidio, mas lhe correspondia.
Parecia afogar naquele perigoso idílio outra paixão, uma agitação íntima que o atormentava.
 
Em Minas, abandonou-o, por caprichos da família, sua mulher legítima, levando ainda consigo a filhinha do casal, o que era para Roberto um imperioso motivo de preocupação. A mulher, com a filha, rumou para a casa do seu rico pai, com o propósito de não se reconciliar com o marido. 
 
Os motivos das desinteligências eram relativamente pequenos e perfeitamente removíveis. Entretanto, por ser sua esposa demasiadamente geniosa e dadas as circunstâncias em que se realizara o atribulado matrimônio, mais evoluíram.
 
A LOUCA DO MORRO DA SAUDADE
 
O ódio que o sogro lhe votava e a fortuna que possuía serviam de sérios embaraços àquela união, e Roberto sentia-se sem forças para enfrentar aquela situação. Ofendido em seu amor próprio, afundou-se no sertão.
 
De vila em vila, de aldeia em aldeia, de fazenda em fazenda, lá ia ele, procurando trabalho no exercício de sua profissão, mas, acima de tudo, lutando inutilmente para esquecer aquele amor infeliz… 
 
Por várias vezes eram vistos juntos, Roberto e Ritinha. Ora escalando a colina, ora em momentos esquecidos, sentados na escadinha da porta da igreja, abraçadinhos, trocando beijos… 
 
Tentou convencê-la da inutilidade daquele romance. Compreensivo e ponderado, procurou afastar-se dela o quanto pôde. Não seria possível ele esquecer a esposa e a filhinha, e logo que fosse oportuno, tentaria por todos os meios juntar-se a elas, como lhe ditava a consciência. 
 
Revelou-se Ritinha indiferente à força daquela circunstância, e nos momentos de maior lucidez, somente sentia fundamentado receio do afastamento de Roberto. Fora disso, eram acentuados os sintomas de progressiva obsessão. Queria ver Roberto e estar a seu lado a todo instante. 
 
Esperava o infeliz mancebo encontrar na meditação, no cimo do monte, ao pé da ermida, uma solução salvadora para as vicissitudes que experimentava em sua tormentosa existência. Mas o que ali encontrava, com frequência, era a diabólica e tentadora viúvinha, cada vez mais apaixonada. 
 
Quando Ritinha descobriu seu propósito de regressar à Minas Gerais, arquitetou então um plano macabro para impedir que Roberto a abandonasse.
 
O moço parecia, naquela tarde, mais triste do que em outros dias. 
 
Angustiado, confessou à mulher que o amava o desejo de voltar para Minas e lutar pela reivindicação de sua esposa e sua filha. 
 
Não percebeu quando Ritinha, cheia de ódio, retirou de uma pequena bolsa um revólver e lhe desfechou pelas costas toda a carga, varando o coração do homem que lhe fugia. 
 
Ao ver consumado o crime, sua demência mais se acentuou e, daquele dia em diante, transformou-se na “Louca do Morro da Saudade”.
 
Internaram-na em um manicômio. O tempo passou e, ao regressar, Ritinha continuava com sua estranha e lírica obsessão. Sua esquizofrenia agravou-se. A afeição que tinha pelo homem transferiu-se para o morro, que passou a rondar com frequência. Sua presença, ora subindo, ora descendo a “Colina da Saudade”, foi notada por todos que por ali transitavam, e muitos, apavorados, continuaram a vê-la, mesmo depois de sua morte!…
 
Quem conhece Catalão, e como nós, aquela hora da noite, transitar pelo Morro da Saudade, pode ser que ainda veja a figura espectral e fantasmagórica de Rita Pó, escalando ou descendo a encosta, numa peregrinação de penitente que procura, no doce sacrifício da recordação, redimir-se de seu grande pecado. 
 
Rita Pó, o nome que por maldade lhe fora dado no hospício, ficou-lhe como uma mácula, eternizando seu trágico destino, quando mandou para o pó da terra o homem que amava. E quem, à luz do dia, visitar aquele local, poderá descobrir, recoberta pela caição recente, na parede da igrejinha, uma lânguida e velada inscrição:
“A malva tem seis folhas, 
O alecrim dezesseis; 
Ou me amas para sempre, ou me deixa de uma vez…”