Morre Thiago de Mello, o poeta da liberdade
Manaus (AM) – O poeta todo vestido de branco. Um homem comprometido com a liberdade e com o amor. Um ser pertencente a um lugar da Natureza e à natureza desse lugar. Um opositor das tiranias e dos assombros ditatoriais. A maior referência poética do Amazonas. Um escritor premiado e reconhecido nacional e internacionalmente. Palavras não faltam para definir, segundo amigos, Thiago de Mello, que às 6h50 desta sexta-feira (14) partiu para o lugar dos encantados da floresta.
À Amazônia Real, Polyana Furtado, esposa de Thiago de Mello, disse que o poeta morreu de causas naturais. Tinha 95 anos e há 13 vivia no centro de Manaus, duelando contra os sintomas do Alzheimer. Por conta da doença, não pode apreciar a grande homenagem que recebeu da 34ª Bienal de São Paulo. Faz escuro mas eu canto, verso extraído de “Madrugada Camponesa”, escrito há 60 anos, foi tema da tradicional exposição que ocorreu de 4 de setembro a 5 de dezembro de 2021.
O velório de Thiago de Mello está aberto ao público no Centro Cultural Palácio Rio Negro (Av. Sete de Setembro, no centro de Manaus), mas com acesso restrito por causa da pandemia da Covid-19. O enterro será neste sábado (15), no Cemitério São João Batista, às 10 horas.
Amigo há 40 anos de Thiago de Mello, o escritor manauara Tenório Telles disse que o poeta se manteve firme até os últimos momentos, apesar da saúde debilitada. “Mesmo com a doença, ele vinha registrando suas impressões em cadernos. Não tinha mais condições de criar, mas fazia registros sistemáticos de suas impressões do cotidiano”, disse Tenório à Amazônia Real.
Nos últimos anos, Tenório aproximou-se ainda mais do poeta, acompanhando-o e participando de eventos. Segundo ele, a poesia de Thiago de Mello tem como marca fundamental “o compromisso com a liberdade, com o ser humano e, principalmente, com a crença na possibilidade de construção de uma sociedade justa e solidária”.
O escritor Milton Hatoum, de Manaus, contou que o poeta Thiago de Mello era uma das pessoas mais generosas que conheceu. “Thiago não invocava a Amazônia como algo exótico ou pitoresco. Ele era possuído, habitado pela região onde nasceu. E traduziu muito bem em poesia esse sentimento de pertencer a um lugar da Natureza e à natureza desse lugar”, disse Hatoum, em declaração à Amazônia Real, tão logo soube da morte do poeta.
Outro importante poeta do Amazonas, Elson Farias, de 83 anos, resgatou a história de Thiago e também falou sobre o falecimento do amigo nas redes sociais. “A Amazônia era a sua maior fonte de inspiração. Ele transformou todo o seu discurso na poesia da Amazônia. Apesar da sua projeção nacional e internacional ele voltou para a Amazônia, construiu a sua casa no interior e aqui viveu e morreu. Ao invés de morrer, na verdade ele está nascendo para a vida da poesia”, afirmou Elson Farias, em vídeo gravado.
O artista além da obra
O poeta Thiago de Mello em viagem ao rio Andirá, em dezembro de 1997
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Izac Maciel, proprietário da Editora Valer, com sede de Manaus e responsável pela publicação de inúmeras obras do autor, lembrou que esteve com Thiago em outubro de 2021 e que, mesmo com a memória falhando, o escritor estava sempre sorrindo. “As andanças dele pelo mundo ajudaram a difundir a mensagem da importância da Amazônia e da necessidade de um olhar mais atento para esta região”, afirma. Em março de 2020, Izac gravou um depoimento em vídeo parabenizando Thiago pelo aniversário de 95 anos.
Neiza Teixeira, coordenadora editorial da Valer, afirmou que Thiago foi um amigo da editora, sempre oferecendo auxílio, poder de influência e seus contatos. “Ele fica na minha memória como o poeta todo vestido de branco, como o poeta que também era um menino. Como vemos na sua poesia, era um coração nobre e doce. O Brasil vive um luto, porque ele era um poeta premiado e que viveu intensamente as histórias mais difíceis do Brasil. Viveu na ditadura, reagiu contra ela e escreveu em favor da liberdade. É o poeta da liberdade e do amor. Esse era o Thiago de Mello”, lembra.
“Quando um poeta se vai do mundo físico, é como se acendesse um alerta para que nós não passemos pela vida sem perceber que é dentro de cada um de nós que a vida acontece. A poesia é vivida, sentida e praticada dentro de nós”, acrescenta a amazonense Regina Melo, autora do romance Ykamiabas, filhas da lua, mulheres da terra, tema da escola de Samba do Rio de Janeiro Acadêmicos da Rocinha, em 2010.
“Perder Thiago de Mello é um alerta para todos nós, porque a vida é vã, mas a obra e tudo aquilo que a gente vive e toca e consegue transformar é o que fica e Thiago de Mello deixa um grande legado de vida, luta e de poema.”
Cidadão do mundo
Em foto de 1962 com o poeta chileno Pablo Neruda (Acervo Jornal do Brasil)
Thiago de Mello e Aníbal Beça (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
O poeta Thiago de Mello na Academia Amazonense de Letras (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
O poeta Thiago de melo (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Viagem com Thiago de Mello à Freguesia do Andirá em Barreirinha, Amazonas, em dezembro de 1997 (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Thiago de Mello na Ponta da Gaivota, em Freguesia do Andirá (Foto cedida por Pollyanna Furtado/2010)
Thiago de Mello na Ponta da Gaivota, em Freguesia do Andirá (Foto cedida por Pollyanna Furtado/2010)
O poeta Thiago de melo (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)
Nascido no dia 30 de março de 1926, em Porantim do Bom Socorro, no município de Barreirinha (AM), município no Baixo Rio Amazonas, Thiago de Mello é considerado um dos maiores nomes da literatura no Brasil e no mundo. Ainda na infância, mudou-se com a família para Manaus. Em 1946, ingressou na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro, mas não concluiu o curso para seguir a carreira literária.
Thiago de Mello é autor de obras como Silêncio e Palavra (1951), Manaus, Amor e Memória (1984) e Mormaço na Floresta (1981). Além de Os Estatutos dos Homens (1977), um contundente manifesto literário de combate à ditadura civil-militar no Brasil. Fica decretado que agora vale a verdade/ que agora vale a vida/ e que de mãos dadas trabalharemos todos pela vida verdadeira, cravou. O poeta amazonense foi perseguido pelo governo dos militares e teve de se exilar durante dez anos na cidade de Santiago, no Chile.
Foi no país vizinho que Thiago de Mello manteve uma frutífera amizade com Pablo Neruda (1904-1973). Com o amigo chileno, aprendeu que precisava se livrar do hermetismo, tornando sua poesia mais acessível, mas sem perder a qualidade poética. Mas Neruda também aprendeu com o amazonense, como afirmou à agência Amazônia Real na única pergunta que respondeu, em setembro último.
“Pablo Neruda, o mais importante poeta do Chile, leu poemas meus no jornal Correio da Manhã. O que mais me chamava a atenção era o seu respeito e interesse pelos poetas moços que encontrava na América do Sul”, respondeu, sobre o início da amizade.
A mulher do poeta afirmou, por ocasião da homenagem na 34ª Bienal, que “Thiago é a síntese de tudo que viveu, dos lugares por onde passou, das pessoas por quem se encantou, das dores por que passou”.
As andanças do poeta incluem passagens pela Bolívia (1958) e pelo Chile (1959, como adido cultural). Exilou-se também na Alemanha (1974) e experienciou a vida na França e em Portugal (1975) antes de retornar ao berço amazônico original. Das visitas à Freguesia do Andirá ou à Barreirinha (na famosa casa projetada pelo arquiteto Lúcio Costa) aos encontros com os colegas poetas no Clube da Madrugada, na Zona Franca de Manaus, Thiago de Mello construiu para si e para o mundo uma história plena de vivências e ensinamentos, muitas delas eternizadas em poesias magistrais.
Escrito entre os anos de 1962, no Estado do Amazonas, e 1963, em Santiago, no Chile, o poema Madrugada Camponesa só veio a ser publicada em livro três anos depois. O Brasil e a América Latina já viviam momentos sombrios, arrancados da normalidade democrática. O verso que impulsionou a Bienal de São Paulo “reflete a ânsia pela transformação que, no contexto em que se vivia na época, era estimulada pelo debate político livre e de amplidão utópica”, conforme escreveu Jotabê Medeiros. “Subitamente pareceu ter sido feito sob medida para aquele tempo.”