Valores Sociais de Antigamente
Qualquer pesquisador, ao verificar o passado, deve ficar atento aos costumes e valores predominantes em cada sociedade de época. Jamais se pode analisar os tempos antigos sob o prisma da sociedade moderna. Para se evitar o anacronismo, a compreensão antecipada de alguns parâmetros é necessária.
Sexo, desaforo e fuxico, por exemplo, são parâmetros norteadores que, de forma bem acentuada, permearam os valores sociais vigentes até a metade do século passado.
Em primeiro lugar, havia um tabu inviolável: a moça, ao se casar, deveria estar na condição de virgindade. Isso lhe era cobrado pelos pais, familiares, além do noivo, padre e padrinhos. Desde os bancos da escola, as professoras exigiam das meninas o recato e se preocupavam em defender o mantra da abstinência sexual. São inúmeras as histórias a respeito.
Quantas jovens, que quebraram esse tabu antes do casamento, tiveram que fugir de casa, se tornaram vítimas de severos castigos domésticos ou de casamentos forçados. Além do que, muitas desavenças e ódios familiares surgiram em função da perda precoce da virgindade da filha.
A maior vítima, no caso, era sempre a própria donzela que ficava em apuros e estava sempre temerosa. Os pais, na tentativa de evitar tal infortúnio, escondiam as moças das visitas, trancafiadas nos quartos da casa, proibiam amizades e namoros, visando a imaculada preservação das filhas.
Existiam até mesmo agremiações, irmandades e instituições onde a condição de virgindade era fundamental para o exercício de alguns rituais. As pastorinhas e noviças, que conduzissem as relíquias sagradas, tinham que ser donzelas imaculadas. As bandeirinhas da Festa do Rosário, por exemplo, resguardam essa antiga convenção estabelecida pela irmandade há séculos. Desde o início das apresentações em Catalão, em 1860, as meninas ou moças-virgens caminhavam à frente dos ternos de congado carregando as bandeiras com o bordado dos santos.
Essa crença inviolável na pureza da mulher-virgem perdurou até os movimentos feministas da década de 1960 e ainda resiste em comunidades isoladas do interior. Bem verdade que, ainda existem resquícios desse tabu que tanto oprimiu o universo feminino ao longo da história.
Ao lado dessa convenção, as sociedades tradicionais consideravam o ato sexual como algo a ser escondido e que sempre esteve relegado ao silêncio das alcovas. Nem mesmo os pares falavam ou comentavam sobre sexo abertamente. Os casais mais antigos, tanto resguardavam o momento do ato sexual que, até os lençóis continham uma abertura para evitar o contato íntimo da pele. Mas, apesar de oculta, a relação sexual, senão frequente, era pelo menos constante. Basta ver as dezenas de filhos que os casais geravam no passado. Entretanto, o segredo prevalecia nessas relações. Mesmo no salão dos prostíbulos, não haviam demonstrações abertas de libido. Tudo ocorria apenas na quietude dos quartos da cortesã.
A educação sexual entre as meninas era quase inexistente. Todavia, entre os rapazes prevalecia o costume da iniciação sexual precoce. Algum parente mais velho conduzia o moço para conhecer alguma dama da noite, fato não inteiramente condenado pelos pais. Em Catalão, por exemplo, uma velha e bem sucedida prostituta se gabava de haver iniciado dezenas de jovens da sociedade local.
Tudo o mais, em termos sexuais, era socialmente inaceitável. Nas comunidades do interior, a heterossexualidade e a homofobia imperavam. Os poucos que ousaram se manifestar em prol da homossexualidade eram relegados e barbaramente condenados. Alguns, inclusive, foram mortos de forma misteriosa, sem conclusões apuradas nem mesmo em inquéritos policiais.
Outra forte convenção social que marcou os tempos antigos foi o repúdio ao desaforo. Desde pequena, a criança era treinada a não aceitar qualquer atrevimento, fora da família, sem esboçar reação. Muito menos em público. Qualquer descortezia ou desfaçatez era considerada grave ofensa pessoal e gerava intriga. Ser rejeitado para uma dança, ser alvo de alguma piada de mau gosto, ser considerado inútil ou mentiroso, além de uma infinidade de outras ofensas, levava ao desentendimento pessoal e entre famílias. Uma vez iniciada, a desavença nunca levava a um final feliz.
O desaforo era o reino dos valentões de antigamente, pessoas, antes de tudo, desaforadas. Humilhavam famílias, instituições e viviam espalhando anarquia entre a comunidade.
Mesmo entre a população em geral, a não aceitação do desaforo predominava. Qualquer humilhação ou desonra martelava a cabeça do indivíduo, a ponto de, na maioria das vezes, cometer uma violenta reação.
Não se convivia com desaforos impunemente. Nos cartórios de Catalão existem registros de centenas de casos dramáticos, que começaram com um simples gracejo ou brincadeira, mas que terminaram em tragédias. A bem dizer, nem terminavam, porque o ódio se eternizava entre as famílias envolvidas. Cada menino ou menina já recebia, desde cedo, uma herança de desavenças e inimizades pregressas que separava ramos familiares e durava a vida inteira.
Outra marca fundamental, nas relações sociais de antigamente, eram os mexericos por parte dos moradores. As comadres, os vizinhos e os parentes formavam uma verdadeira sociedade do fuxico.
Nada mais perigoso do que uma inverdade repetida, de boca em boca, indefinidamente. Quantos desentendimentos trágicos nasceram de um mero comentário maldoso que logo se transformava em grande futrica?
Na verdade, o fuxico era o alto-falante do diabo nas sociedades de antigamente. As inverdades eram repassadas e aumentadas por moradores, onde quer que estivessem, como uma diversão pessoal e silenciosa. A mentira, cochichada e repetida, ganhava logo ares de verdade e atingia proporções cada vez maiores. Desse modo, a maioria dos desentendimentos sociais nascia com o comentário maldoso, revigorava com a fofoca, ganhava feição de desaforo e passava a exigir retaliações.
Assim, a vida de antigamente não era o mar de tranquilidade que apresentava ser na nostalgia de muitos pesquisadores. O tabu do sexo, a emergência do desaforo e os constantes fuxicos colaboravam para o surgimento de vinganças pessoais e familiares.
FOTO: Igreja Velha Matriz. Ao fundo o velho hotel da Matriz
FOTO: Morrinho da Saudade com a capela de São João
FOTO: Bandeirinhas do Terno Pio Gomes
FOTO: Bandeirinhas na Festa do Rosário (Penacho)
FOTO: Colégio Mãe de Deus. O símbolo da educação catalana
(Por Luís Estevam)