O CONGADO NA MARQUÊS DE SAPUCAÍ: uma participação (in) visível por Cairo Mohamad Ibrahim Katrib
O Congado sempre foi reticente em relação à interferência externa, principalmente quando o assunto é divulgação midiática do Congado local. Desde o ano de 1973 que o Congado está inserido nas comemorações em louvor a Nossa Senhora do Rosário através da Lei Municipal nº. 46 de 03 de outubro de 1973, que oficializou a comemoração na cidade e por meio de seus artigos tenta dar à Festa mais notoriedade e maior projeção comercial e turística, inclusive com a intenção de lucrar com sua realização.
Várias foram as incursões do poder público local em transformar o Congado em uma atração turística. O próprio Carlos Rodrigues Brandão narra em seu livro A festa do Santo Preto, a ação frustrada de um prefeito que, no ano de 1973, preparou numa área fora do espaço da Festa todo um aparato para a passagem dos ternos em desfile pelo local. O evento foi divulgado nos cartazes da comemoração daquele ano, os ternos avisados, mas na hora e dia marcados, não apareceram deixando autoridades e público à espera; não compareceram alegando que aquele tipo de evento não era devocional, mas sim voltado para promover a imagem dos políticos nos anos eleitorais.
Contudo, no ano de 1996, logo após o episódio de destruição da imagem da Santa, alguns grupos de Congado aceitaram um convite do Governador de Goiás para participarem do carnaval da cidade do Rio de Janeiro, posto que a Secretaria Estadual de Cultura de Goiás havia assinado um acordo com a escola de samba Unidos do Viradouro, que apresentaria um enredo falando das riquezas regionais do Brasil no carnaval daquele ano.
Foram escolhidas para representar Goiás no carro alegórico cercado de algumas alas, as Congadas de Catalão, a procissão do Fogaréu da cidade de Goiás, as Cavalhadas de Pirenópolis e as águas termais de Caldas Novas. Estes seriam os atrativos destacados pela escola como sendo os aspectos culturais e turísticos mais significativos de Goiás.
Alguns membros da Irmandade, seguindo os preceitos católicos que regem a instituição, demonstraram-se reticentes em expor o Congado numa festa pagã como o carnaval, levando em consideração também que o objetivo do Congado é louvar Nossa Senhora do Rosário e não expô-las como atrativo turístico. Mesmo assim, diante do acordo firmado e do compromisso assumido por alguns membros do Congado, aceitaram participar do desfile na Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro.
Ao aceitarem, outro desconforto foi gerado, pois a maioria dos dançadores afirmou que a escolha dos participantes que representariam o Congado no referido desfile não foi democrática, porque mais uma vez levou-se em consideração as questões políticopartidárias e não a vontade do grupo. Descontentamento gerado, a questão era então esperar o resultado.
Mesmo diante disso, o Congado ficou na expectativa da repercussão que a aparição do grupo geraria no desfile de carnaval do Rio de Janeiro. Como haviam passado por uma série de problemas, acabaram aceitando a ideia de que a exposição ajudaria na consolidação da festividade na cidade de Catalão, o que aumentaria o interesse dos mais novos em participarem do Congado, uma vez que ele seria reconhecido nacionalmente pela sua importância cultural.
Por outro lado, a preocupação permanecia em relação ao lado profano do carnaval e ao sentido devocional do Congado. Essa mistura entre sagrado e profano, que tanto incomodava a Irmandade ao permitir a ida do Congado ao carnaval, se insere na concepção de que fé e festa, sagrado e profano não deveriam ser misturados. Para o catolicismo o carnaval é uma festa pagã que antecede um período de penitência, sendo uma manifestação carnal não bem vista.
Assim, se a Irmandade percebe, no caso do exemplo citado, que o Congado se encontra envolto de uma sacralidade única e que esta pode ser ameaçada em contato com o universo pagão do carnaval, é pertinente dizer que todo esse “ordenamento simbólico” agrega valores diferenciados no que diz respeito aos sentidos atribuídos ao carnaval e ao Congado; ainda que o mesmo sujeito frequente ambas as esferas, a do devocional e a do lazer, ainda assim são rituais e tempos diversificados na complexidade do existir culturalmente.
Todavia para além dessas questões era possível até aceitar que o Congado apenas encenaria sua prática cultural, o alvoroço maior criado na cidade de Catalão não era tanto pelo fato da presença numa festa pagã e sim porque nem todos foram convidados para viverem aquele momento que seria extra-lógico, de ruptura com o próprio cotidiano da cidade, de êxtase provocado pela participação no desfile. Inclusive sabemos que nem todos os ternos do Congado seguem à risca o sentido de sacralidade imposto pela igreja à Irmandade, pois cada um constrói seu nexo de sentido com a Festa de acordo com a capacidade que tem de externar seus sentimentos, sua religiosidade e sua relação com as forças ancestrais.
Assim, o fato despertou na população uma expectativa em poder ver a cidade representada na maior manifestação da cultura popular brasileira e para os congadeiros convidados essa participação teria um sentido especial, pois seriam vistos em rede nacional num dos maiores canais de televisão do país. Por parte da prefeitura da cidade a expectativa era de retorno financeiro imediato, incentivando a Festa como atrativo turístico, pois ela seria conhecida nacionalmente.
Um acontecimento que deveria ser um marco histórico para a cidade foi, na verdade, uma frustração, caiu no esquecimento porque o carro alegórico e as alas que representavam o Estado de Goiás foram muito pouco destacados pela televisão.
O acordo firmado entre prefeitura municipal, governo do Estado e escola de Samba, foi o de mostrar na avenida as potencialidades turísticas e culturais de Goiás, mas não foi firmado acordo com a empresa que divulgaria o carnaval em canal de televisão aberto, para dar destaque ao carro alegórico de Goiás, um dos motivos do não aparecimento dos membros do Congado durante o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Os gastos aviltantes com roupas e contratos com a escola de samba foram em vão, pois nenhum retorno mais evidente acontecera. Os registros resumiram-se apenas em algumas fotografias arquivadas no acervo da Fundação Cultural da cidade.
Segundo alguns dançadores que participaram do carnaval carioca, representar o Congado de Catalão para todo o Brasil foi uma emoção muito grande. Sentiram se envaidecidos com o luxo e a grandiosidade daquela festa. Mas, ao mesmo tempo, que se sentiram orgulhosos, demonstraram-se decepcionados por não ter sido possível compartilhar com a cidade aquele acontecimento. Mesmo assim, eles ainda têm aquele momento como positivo na suas lembranças.
Para outros, aqueles que não participaram do carnaval, restaram marcas e ressentimentos, já que não puderam estar ali com os outros, vivendo o luxo e a glória, e nem tampouco viram a escolha dos participantes como democrática. Esta escolha foi realizada pelo próprio capitão dos ternos representados, escolhendo os dançadores mais próximos e também por indicações do festeiro do ano e dirigentes municipais.
Outros dançadores ainda se mantêm contrários à participação da Congada no carnaval, por considerarem que a Festa, devido seu caráter religioso, não poderia estar inserida em um evento considerado profano, como é o caso do carnaval. Mesmo assim, os dançadores escolhidos foram até o Rio de Janeiro e desfilaram. O retorno esperado que era de fazer da Festa um grande atrativo turístico nacional não aconteceu.
Toda a representação contida nos gestos e nas atitudes dos praticantes do Congado reitera o posicionamento defendido de que são essas múltiplas possibilidades de experimentar com festa a sua fé é que dá sentido à comemoração estudada, pois os sujeitos, ao festejarem, influenciam e são influenciados pelo evento. Assim, os grupos sociais compartilham esses momentos festivos em intensidades distintas e vivem o festar não só nos lugares tidos como oficiais, mas em todos os ambientes em que se sentem aptos a celebrar, como nas residências, quintais, ruas, lugares múltiplos dessa experiência.
A pesquisa propiciou-me pensar a cultura popular, como proposto por Michel de Certeau, como ações (re) criadas incessantemente pelos seus atores sociais. Perceber esse universo ativo, em que os sujeitos reelaboram formas de assimilação cultural e as incorporam como marcas de vida, permite dizer que nunca devem ser lidas de forma enviesada como forma classificatória de um nivelamento cultural. Consequentemente penso a cultura efetivada no campo da descontinuidade, dos sentidos múltiplos quando ela assume papel diferenciado para cada sujeito e grupo social. Da mesma maneira vejo as possibilidades interpretativas da Festa, enquanto representação cultural, coletiva e histórica, como práticas e representações que fluem num universo construído cotidianamente por muitas vozes, como pôde ser visto até aqui.
Mais do que qualquer coisa, a situação do carnaval mostrou que os conflitos de interesses e de entendimento em relação à própria devoção estão presentes nas práticas culturais populares. Vale lembrar que as construções de sentidos em torno das relações sociais que permeiam a história do Congado em Catalão se insere no universo das particularidades com as quais os indivíduos constroem suas mediações simbólicas e traduzem em forma de narrativas o viver e o sentir a fé e a festa de múltiplas formas, exprimindo valores e significados ao vivido.
Notei durante a pesquisa que esses valores, muitas vezes, perpassam o âmbito material e se redimensionam para um universo movido pelas formas simbólicas, sejam elas as que expressam a fé e a religiosidade dos sujeitos que a praticam em meio a muita diversão e celebramentos, sejam elas aquelas que promovem o transe do cotidiano para o espaço da festa, onde vislumbrá-la parece apaziguar as diferenças ou as acirram, pois mesmo que compartilhando uma mesma festa, os sentidos e os significados a ela atribuídos seguem caminhos sinuosos de encontros e desencontros.
Neste viés, a não visibilidade dos congadeiros participantes do carnaval carioca serviu de conforto aos que não foram escolhidos, pois passaram a ter um argumento a mais para questionar a ida do grupo e sua participação no evento como sendo uma ação partidária e política que privilegiou um grupo em relação a outro.
Na visão de Paulo Cardoso Vicente, servente, 34 anos (Depoente não quis ser identificado. Utilizo nome fictício):
Tá vendo, é por isso que falam que Deus é pai e não padrasto (balança a cabeça). Eles quiseram desfazer da gente, falando que a gente estava com
inveja deles e viram que estávamos certo. O que a gente não queria é que eles passassem por esse vexame. Eles que dizem que a Irmandade é usada
pelos políticos (pausa) Agora eles que foram e tem mais: compraram gato por lebre! E a nossa cultura? A nossa Congada? Cadê o retorno que ia ter?
(Entrevista, 2007).
Acontecimentos, como a queda da torre da igreja, a destruição parcial da imagem da Santa e a participação do Congado no carnaval carioca balizam a ideia aqui traçada de que a cultura é linguagem em constante construção. Ela não é padronizada ou engessada como prática absorvida na mesma intensidade por todos os indivíduos, pois como bem destaca Ginzburg (1990), existe uma troca ativa de níveis culturais.
A Festa “é materialização simbólica expressa no cotidiano. Toda verdadeira festa apresenta algo de místico porque celebra a vida” (BARROS, 2002, p.59-70). Assim, passo a destacar os outros contornos dados à organização dos momentos festivos, que nos levam a compreender os múltiplos sentidos em torno do festejar Nossa Senhora do Rosário em Catalão.
O Blog da Maysa Abrão foi atrás das fotografias arquivadas no acervo da Fundação Cultural Maria das Dores Campos:
Apresentação do Congado Catalano ao artista plástico e carnavalesco, Joãosinho Trinta (in memoriam):
Na época, Catalão contava com o seguinte quadro administrativo:
Prefeito: José de Fátimo Moreira
Chefe de Gabinete: Velomar Gonçalves Rios
Procurador do Município: Dr. Dellis Rosa Calaça
Secretário de Administração: Otacílio Nascimento de Alcântara
Secretário de Educação e Cultura: Maria Natividade Barbosa
Secretário de Saúde: Dr. Joaquim Gonçalves Ferreira
Secretário Planejamento Ind. e Comércio: Waldivino José Duarte
Secretário da Agricultura: Jorge André
Secretário da Ação e Promoção Social: Marta Regina Porto Moreira
Subprefeito de Santo Antônio do Rio Verde: Luismar Arantes
Secretário de Transportes: Luismar Arantes (Interino)
Presidente das Legionárias e 1ª Dama: Marta Regina Porto Moreira
Presidente da Fundação Cultural Maria das Dores Campos: Edson Democh
Adib Elias era Deputado Estadual