Memórias de um Peregrino – NAS TERRAS DE LEÓN

Estranhamente, quando já avistava El Burgo Ranero, cerca de 8 km à frente de Bercianos, voltei a sentir fortes dores nos pés e na coluna, o que quase me impedia de caminhar.Tive sérias dificuldades para alcançar o povoado, onde encontrei um albergue em boas condições. Lembrei-me da recomendação da Lourdes e resolvi ficar por ali. Passei boa parte da tarde tratando de minhas bolhas, expondo-as ao sol, inclusive. Sentia dores nos pés e receava ser tendinite, conforme fora alertado.
Pela primeira vez,, conheci um albergue que não dispunha de empregados e ficava aberto 24 horas por dia. Uma moradora da vizinhança era a responsável pela faxina, disseram-me. Mas eu não a vi.Todos colaboravam para manter o local limpo e organizado, inclusive a cozinha e os banheiros. Deixei no cofre do albergue a minha contribuição, sem que ninguém a tivesse pedido.
Podia ver do albergue o campo de futebol vizinho, tomado por trigo a granel, depositado a céu aberto, amontoado sobre a grama, aguardando espaço para ser removido para um conjunto de silos existente no local.
A estada no pequeno pueblo ficou mais alegre com a chegada de muitos peregrinos conhecidos: Inocencia e seu namorado, Joan Bueno, Alejandro, um arquiteto colombiano que vivia em Madri, o israelense Harber, Iasmim, Lúcia e vários outros, quase todos com problemas nos pés, nas articulações ou nos músculos das pernas. Brincamos muito e tiramos fotos.
Hilário o encontro com uma das brasileiras no banheiro misto, sem portas nos boxes, durante a ducha. A jovem não sabia o que tampar com as mãos…
Apesar das brincadeiras, no fundo eu estava preocupado. Sabia que não teria condições de seguir no dia seguinte: continuar poderia significar o fim da caminhada. Decidi então, que iria ficar repousando em León, a 40 km dali, acompanhando o grupo de peregrinos que havia resolvido seguir de ônibus até aquela cidade, tida como uma das melhores de todo o Caminho de Santiago. Se teríamos de ficar parados, que fosse em uma cidade com melhores alternativas turísticas.
Na hora do embarque, na manhã seguinte, Harber, o judeu, estava em dúvidas:
— Um anjo pede-me para ir a pé, mas o demônio deseja que eu vá de ônibus — brincava, em catalão. Isso mesmo: um judeu inglês, que vivia em Israel e falava catalão!
Com cerca de 100 mil habitantes, León é uma cidade muito antiga. O seu povoamento teve início em 79 a.C., com a instalação naquela área de um acampamento romano. Possui uma colossal e belíssima catedral, sempre apinhada de turistas, onde cobravam 500 pesetas pelo ingresso, com a finalidade de levantar recursos para as obras de restauração. O intenso movimento turístico torna dinâmico e sofisticados o comércio local e, finalmente, pude comprar o meu saco de dormir, pesando apenas 600 gramas.
Em plena praça, artistas russos cantavam ópera, buscando uns trocados, conforme eu já vira em Burgos. Vi também músicos espanhóis se apresentando nas ruas, que, raramente, cantavam trechos de alguma canção brasileira, situação similar à constatada nas rádios do país.
O albergue onde fiquei, pertencente a uma ordem religiosa, era limpo, confortável e dispunha até de um guia, para atender os interessados em fazer um tour pela cidade. Na hora marcada, lá estava eu, todo excitado para conhecer a famosa León. Mas, para a minha decepção, o passeio era a pé, justamente o tipo de atividade que eu estava evitando. Assim, desisti de conhecer melhor as atrações locais, desejo que eu tanto acalentara. Poupei-me, para nao prejudicar a recuperação dos pés.
Na hora de dormir, os companheiros de quarto riram bastante quando lhes disse que estava de casa nova, referindo-me ao meu novo saco de dormir. Afinal, o peregrino leva uma vida de caramujo, eu dizia. Ou “vida de caballo”, como ouvi um espanhol resmungar, depois de jogar a mochila nas costas.
Estava em León, praticamente, todo o grupo com o qual me familizara. Entre outros, revi Denize e dois daqueles três modelos brasileiros, os quais eu não havia visto nos últimos dias. Um deles, com problemas nos pés, retornara a Barcelona, disseram-me. Infelizmente, várias dessas pessoas eu não veria mais.
Não resisti ao chamado das trilhas, ao acordar na manhã seguinte com o burburinho dos que partiam. Decidi acompanhá-los, ao invés de repousar, pelo menos mais um dia. E, para meu regozijo, o albergue dispunha de uma máquina automática para servir o café-da-manhã, com vários tipos de biscoitos e bolachas. Fiz as contas, coloquei as moedas na máquina, acionei comandos… e nada de ela entregar as compras. Ou, então, devolver as moedas. Cansei de esperar, dei umas pancadas no equipamento, mas não adiantou. Ainda procurei algum funcionário, mas ninguém havia chegado. Fui embora lamentando, sem o café-da-manhã e sem as moedas.
Segui devagar, com dificuldades, parando constantemente para ajustar o curativo. Enfrentei um trânsito pesado e gastei mais de uma hora para alcançar a saída da cidade. Naquele local o Caminho se bifurcava.
Descansei um pouco, tomei uma água e, também, uma difícil decisão. Enquanto a maioria dos peregrinos seguia pela trilha paralela à “carretera”, por ter melhor estrutura de apoio, tomei o rumo de Villar de Nazariff, um pequeno pueblo cujo acesso é bem rústico e bucólico, com trilhas entre plantações, pastagens e pequenas povoações. Mas com limitadas opções de alimentação e hospedagem.
Minhas condições físicas não me permitiam acompanhar os demais. E, ao optar pela caminhada solitária, eu, na verdade, também desejava isolar-me, refletir e, principalmente, exercitar meu desapego.
FOTO:  Albergue de El Burgo Ranero
FOTO: Harber e Paulo Hummel Júnior
FOTO: Catedral de León

 

FONTE: Extrato do livro Memórias de um Peregrino, de Paulo Hummel Jr

 

 

 

 

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