Vozes de uma festa em transformação

Por: Cairo Mohamad Ibrahim Katrib

Doutor em História Cultural

Docente da Universidade Federal de Uberlândia

 

 

 

(…) Uma, duas vezes eu sonhei.

As lágrimas caídas não contei.

E tudo que era bom, do ventre vai brotar

Nas terras que hoje em dia, não posso mais pisar.

Terras de Anas e Marias,

 da Senhora do Rosário,

 de Antero e seu calvário.

Das rosas em botão.

Terras de José de qualquer um

 que assim quiser.

 Terras de Congadas. Terras de Catalão.

Sinos da igreja, coreto na praça,

 ao longe um casarão, muitas vezes via lá de cima o morrinho de São João.

 Histórias de amor e de magia de um povo bravo e lutador, versos de alegria de uma terra de louvor *

 

A origem da Festa do Rosário da cidade de Catalão-GO é como a de qualquer outra cidade do país onde os festejos em louvor aos santos cultuados pelos escravizados se efetivam em lendas e mitos. Entretanto, o que podemos verificar é a grande semelhança lendária existente, já presenciada pelo pesquisador Carlos Rodrigues Brandão nos seus estudos sobre cultura popular, e, em especial, sobre as festas em louvor a Santa do Rosário realizada nas cidades mineiras, sobretudo as do Triângulo, devido à proximidade com o município de Catalão-GO.

As descrições da festa do Rosário de Catalão e, consequentemente, das Congadas locais são as mais difundidas na cidade, fazendo parte obrigatória de todos os trabalhos que remetem a este tema. No trabalho de Brandão A Festa do Santo Preto, publicado em 19751 temos uma descrição dos rituais festivo-devocionais colhidos na cidade de Catalão, na década de 70 do século passado. Nesse estudo encontramos diversas versões que remetem a origem da festa e das Congadas. Versões estas com forte teor mítico sobre a origem da Congada no Brasil, extraídas a partir de relatos dos dançadores de diferentes cidades do interior de Goiás e Minas Gerais, já que foi este estudioso um dos primeiros a pesquisar o processo ritual que envolve os festejos a Nossa Senhora do Rosário da cidade de Catalão-GO. Nosso objetivo neste texto é (re) construir as tramas que envolvem a realização da Festa do Rosário da cidade de Catalão-GO.

Nos estudos de Carlos Rodrigues Brandão encontramos várias versões que procuram homogeneizar o mosaico formado sobre o trajeto da festa de Catalão transposto pelos sujeitos sociais e que colaboraram para constituir a festa da Congada e compreender a forte presença da cultura negra no município. Vejamos algumas delas:

 

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VERSÕES:

 

  • 1ª – Nossa Senhora foi achada no deserto dentro de uma gruta. Para conseguirem tira-la dali foram chamados os Congos e os Moçambiques. Os Congos dançavam, mas ela não os acompanhava. Os Moçambiques vieram e dançaram para a Santa que gostou e os acompanhou. Assim, eles fizeram uma igreja em sua homenagem e ali a colocaram, contudo ela voltou à gruta. Foi feita então pelos negros uma igreja no local onde se encontrava a gruta e ali ela permaneceu. Todos os anos passaram a ser realizada uma festa em sua homenagem.
  • 2ª – Nossa Senhora do Rosário apareceu no alto  de um rochedo para algumas pessoas, mas nem todas conseguiram vê-la. Um padre celebrou uma missa no local e a levou para a igreja. No dia seguinte, ao amanhecer, a Santa já não se encontrava mais na igreja. Havia voltado para o rochedo. O padre retorna ao local acompanhado de banda de música entoando cânticos em louvor a Santa o que em nada adiantou. Apareceu então um preto velho, de nome pai João e se propôs a buscá-la. Foi desacreditado, pois diziam que se o padre e nem a banda de música haviam conseguido fazer com que a Santa retornasse à igreja, não seria ele, um negro, que conseguiria. Pai João reuniu alguns amigos e foi com eles até o local. Chegando lá começaram a tocar e a cantar utilizando instrumentos mais cadenciados como xique-xique e patagongo. A santa gostou tanto que os acompanhou até a igreja, não mais saindo daquele local.
  • 3ª – No tempo da escravidão, os negros trabalhavam no deserto próximos de uma gruta. Nossa Senhora apareceu para eles e lhes disse que se fizessem uma festa em sua homenagem ela lhes concederia a liberdade. Cantaram, dançaram de forma mais agitada, mas a Santa não aceitou. Dançaram e cantaram mais lentamente, e assim ela os acompanhou. Os que dançaram mais rápido foram os Congos e os que dançaram mais lentos os Moçambiques. Os negros levaram Nossa Senhora do Rosário à Princesa Isabel e contaram a ela que a Santa havia lhes aparecido e conversado com eles. Devido esse milagre a Princesa Isabel concedeu-lhes à libertação. Todos os anos, a partir desta data, passaram a fazer uma festa em homenagem à Santa do Rosário.
  • 4ª – Nossa Senhora do Rosário estava no deserto e os negros foram até lá para homenageá-la com danças de sua terra, tentando tirá-la  de lá. Até então o padroeiro dos negros era São Benedito. Vieram os Congos, dançaram e ela sorriu, mas não os acompanhou. Vieram então os Moçambiques, lentos, ela gostou e os acompanhou. Por isso que até hoje são os Moçambiques que constituem o principal terno da Congada.
  • 5ª – Os Congos foram até o lugar onde se encontrava a imagem de Nossa Senhora do Rosário, em cima de um cupim e a levaram para uma fazenda onde moravam. Por fazerem muito barulho, a Santa não os seguiu. Vieram então os moçambiques, povo humilde com uma dança mais lenta o que agradou a Santa que os acompanhou. Por isso até hoje os Moçambiques carregam a imagem de Nossa Senhora do Rosário.

 

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O apego aos mitos fundadores pode estar relacionado também a preocupação das pessoas mais antigas em transmitirem aos mais jovens a história da festa por meio das vozes do passado, como também de funcionar como o nó que prende  os mais jovens à festa e ao congado, uma vez que, atualmente, não terem a preocupação em absorver as experiências dos mais velhos sobre a sua cultura, aqui expressa pela devoção a Nossa Senhora do Rosário e a prática da Congada.

Outro fator interessante a destacar é a não preocupação dos órgãos oficiais ligados à cultura da cidade em preservar e registrar as histórias de vida dos dançadores mais antigos. Muitos dos registros se perderam no tempo em virtude de incêndios e falta de espaço adequado para se guardar os livros de atas da Irmandade, os livros de Tombo da paróquia e outros documentos que poderiam constituir um importante acervo documental para a cidade. Não é possível compreender a dinâmica dos festejos do Rosário sem recorrermos à memória oral que guarda nos subterrâneos das recordações ou lembranças os nós e os fios condutores que religam vida, fé e festa.

As narrativas históricas das comemorações em louvor a Santa do Rosário aparecem também nas músicas entoadas pelos ternos durante ensaios, visitações e cortejos e evidenciam a importância da cultura negra, a necessidade pujante da liberdade frente ao sofrimento e as humilhações que marcam a história do negro no Brasil.

Notamos no ano de 2002, quando acompanhávamos um terno da cidade recém-criado e pela primeira vez saindo às ruas durante as comemorações em louvor a Virgem do Rosário – Terno Vilão II, que várias músicas improvisadas pelo capitão do terno procuravam a seu modo, reelaborar momentos da trajetória do negro da África para o Brasil ou até mesmo da sua importância étnica para a cultura brasileira e local. Numa das músicas do terno, o capitão Eurípedes Severino – Pavão fazia menção à história da escravidão no país. Elas são geralmente improvisadas, com refrãos curtos e com rimas aparentes, cantadas pelo capitão e repetidas por parte dos dançadores e por outros. Os dançadores sob a batuta do capitão cantavam: Sou africano/ vim para o Brasil contra a vontade/ trabalhar na escravidão dia e noite/ sem ter liberdade.  

Outras músicas retratam as andanças dos fundadores do terno até chegar à cidade de Catalão-GO ou de algum parente que levou adiante o seu terno, como retrata o refrão improvisado pelo terno Vilão II que cantava: Sai de Mato Grosso/ passei por Minas Gerais/ cheguei a Catalão/ Terra boa de Goiás. Na letra dessa música é possível notar a forte presença da cultura mineira, principalmente dos negros oriundos desse estado que para a cidade vieram desde os idos de 1800, trazendo para a cultura local seus hábitos, cultura e devoção, alcançadas mediante a sua fé e persistência, pois conforme nos aponta Mauro Passos6, na trama ordenada de símbolos, gestos e representações, o catolicismo vai se intercruzando com a vida. Dor, alegria, esperança, problemas, anseios, festas, novenas e santos, vão compondo o cenário dia a dia.

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O Congado é uma tradição muito antiga em Minas Gerais. Remonta o século XVIII, período em que várias irmandades de negros se difundiam pelo estado e nos lugares onde estas não se efetivavam a prática do Congado surgia de forma autônoma, ligada quase sempre aos festejos católicos locais. Isso vem de encontro da origem das congadas em Catalão-GO, cuja semelhança com as praticadas nas cidades mineiras são muito próximas, pois os primeiros negros vieram para o município, juntamente com grandes fazendeiros, eram oriundos do estado de Minas Gerais.

Devido a essa proximidade, vimos que um mosaico de práticas e representações se formava mesclando as tradições mineiras à cultura goiana em torno da devoção e dos louvores a Nossa Senhora do Rosário. Ambas, movidas pela fé de um povo a um determinado santo ou as diferentes formas de atualização dessa fé em gestos e atitudes, passaram a expressar e construir o sentido da vida, dos mistérios e da força que passa a mover sujeitos anônimos, trabalhadores que, cotidianamente, buscam forças para manter-se vivos, regrando de esperanças o futuro, fazendo dele não só um universo de incertezas, já que a única certeza é ter fé e acreditar que tudo é possível, que Deus proverá.

Nessa multiplicidade de sentimentos e significados, observamos que tanto em Minas Gerais quanto em Goiás, em especial na cidade de Catalão-GO, que Nossa Senhora do Rosário é tida como a mãe de muitos devotos, que com ela mantém uma relação afetiva e de intimidade.

Percebemos nessa interlocução de possibilidades e diálogos que mais do que histórias e mitos é possível vermos que outros enredos são desenrolados; diversos encontros e desencontros entre os personagens que compõem o cenário festivo se entrecruzam; interesses da projeção política ou social são arquitetados; mudanças na festa são inseridas; a organização da festa, a arrecadação dos gêneros alimentícios utilizados para tornar realidade os cafés e almoços oferecidos são formas de sociabilidades de reencontros consigo mesmo e com os outros, tradições que se recriam a cada ano ou são extintas ao bel prazer da batuta daqueles que defendem um progresso e uma modernidade em prol de um partidarismo, de uma ideologia que não expressa à vontade dos congadeiros e dos devotos do Rosário.

A festa é uma engrenagem que só funciona com as peças certas encaixadas nos lugares corretos, em função do seu sentido e da sua sensibilidade subjetiva. Festejar o Rosário vai além do montante de dinheiro disponibilizado para ornamentar os ternos de congo, as barganhas políticas estabelecidas, as desavenças partidárias; o marketing utilizado por empresas locais para divulgar suas marcas durante as comemorações em louvor a Virgem do Rosário.

Muitos são os condicionantes ou teias que entrelaçam a fé dos sujeitos a uma santa, para muitos a única forma de solucionar problemas que saem do controle material transportando as relações para o sobrenatural. Reforça por meio de promessas, a cura, um emprego, uma casa. A felicidade pode estar em pequenas coisas. Para outros, a festa é a oportunidade, ou melhor, os espaços para concretizar interesses pessoais, sejam eles de autoridade, de formas, políticas ou comerciais.

São vários os mistérios que perpassam as táticas de reelaboração dessa manifestação cultural. Mistérios estes contidos não só no rosário dependurado nas mãos da imagem de Nossa Senhora do Rosário, preso na farda de um dançador ou nas mãos dos fiéis, que compassadamente fazem suas orações, ou como amuleto de proteção espiritual, símbolo da fé em Nossa Senhora. O rosário é o fio condutor que nos permite percorrer pelos diferentes momentos festivos, dialogando com os sujeitos e com a própria festa.4

Segundo o Guia de Religiões populares do Brasil, rosário é também conhecido como terço. O termo “rosário”, que significa em latim “jardim de rosas”, é o nome dado na igreja católica ao colar utilizado para contar as orações, sendo uma prática antiga usada por diferentes religiões. Dentro do Cristianismo, a utilização oficial do “rosário” data-se da época do papa Leão X, em 1520. Consiste na meditação sobre os quinze mistérios da vida da Virgem Maria. Esses mistérios são divididos em três grupos de cinco, o colar usado na meditação também tem  apenas cinco mistérios, por isso é chamado de terço(a terça parte); o rosário completo exige, portanto, que sejam dadas três voltas no terço. O terço consiste em cinco grupos de contas pequenas (os mistérios) separados por contas maiores. O colar é fechado por uma medalha com a imagem de Nossa Senhora; dela sai um apêndice com cinco contas e o crucifixo. Na cruz se reza o Credo, após declarar a intenção na qual é recitado o terço; nas cinco contas, um Pai-Nosso, três Ave-Marias e um Glória ao Pai; e na junção, um Pai-Nosso. Vale destacar que cada mistério tem dez contas; os quinze mistérios somam um total de 150 contas, número que foi escolhido por ser o mesmo  número dos salmos da Bíblia na versão latina. Em cada conta do mistério é rezada uma Ave-Maria: isso marca o tempo dedicado à contemplação do mistério. A junção e as contas grandes marcam os intervalos; nelas são rezados, no início de cada mistério, um Pai-Nosso (após declarar o mistério) e no seu final, um Glória ao Pai. Ao terminar todos os mistérios, chegando novamente na junção, é recitado o Salve – Rainha, que encerra a devoção. Os mistérios são os seguintes:

  • Mistérios Gozosos

1 – anunciação do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria(Lc1. 28-38)

2 – visita da Virgem Maria à sua prima Isabel (Lc 1. 39-56)

3 – nascimento de Jesus na gruta em Belém (Lc 2. 6-7)

4 – apresentação do menino Jesus no Templo (Lc 2. 22-39)

5 – Jesus no Templo entre os doutores (Lc 2 . 40 – 52)

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  • Mistérios dolorosos

1 – agonia de Jesus no Horto das Oliveiras (Lc 22, 42-44; Mt. 26. 36-46)

2 – flagelação de Jesus preso à coluna ( Jo 19.17)

3 – coroação de Jesus com espinhos (Mt. 27. 29-30)

4 – subida de Jesus ao monte Calvário (Jô 19.17)

5 – crucifixão e morte de Jesus (Mc 15. 34-37)

 

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  • Mistérios Gloriosos

1 – ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 28. 6-7)

2 – Ascensão de Jesus Cristo ao céu (Mc 16.19)

3 – vinda do Espírito Santo sobre a Virgem Maria e os apóstolos (At. 1.8)

4 – assunção gloriosa da Virgemm Maria ao céu (Ap. 12.1)

5 – Coroação de Nossa Senhora como Rainha do Céu e da Terra (Ap. 12.1)

 

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Se percorrermos os espaços da festa de forma há percebermos que muito mais do que diversão e lazer os festejos do Rosário na cidade de Catalão, faz dela uma prática viva da cultura popular balizada no entendimento das relações estabelecidas a partir do cotidiano vivenciados pelos diversos sujeitos sociais que compõem o cenário da festa.

Assim como são muitos os mistérios que a envolvem, articulando lembranças, esquecimentos, formas, desejos, diálogos e falas; representações e simbolismo, o fio condutor que liga a história da Festa da congada de Catalão é o mesmo fio que mantém juntos vida e festa, apesar das transformações impostas em defesa do melhoria e da modernidade, pois segundo destaca Mauro Passos: a festa não parou, mudou de caminho e a trajetória continuou a emocionar e a fazer pensar. Nas vias das divergências, das perdas e dos desafios, a festa continuou a memorar tradições, sem deixar de conjugar, no entanto, o verbo trabalhar. Encontros. Desencontros. Silêncios. Confrontos. E a festa continuou. Continua. Não só o que já foi, mas o que vem vindo, para continuar ser. Vivenda de promessas. 2

* TERRA MINHA., ABRAHÃO, I. In: Trilhos. Catalão:Estúdio Mundo do Amor, 2003. 1 cd sonoro. Faixa 09 (4min.11s).

1 BRANDÃO, C. R. A festa do santo preto. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1985.

2 PASSOS, M. O Catolicismo Popular – O sagrado, a tradição, a festa. In: _________ A Festa na vida – Significados e Imagens. Petrópolis:Vozes, 2002. p 165.

 

Mas fotos abaixo, alguns exemplos do rosário preso na farda de um dançador ou no pescoço dos fiéis como amuleto de proteção espiritual, símbolo da fé em Nossa Senhora.

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