Catalão 157 anos – O desafio de mergulhar pelo (meu) passado… Por: Cairo Mohamad Ibrahim Katrib
Catalão tem seus encantos, suas histórias, suas memórias e muitos personagens alguns ilustres por fazerem parte da história oficial e outros tantos anônimos que fincaram suas raízes na cidade, constituíram famílias e fizeram história na contramão das narrativas que recontam uma única cidade. Sou reflexo desse turbilhão de narrativas que reconstituem diversas histórias por meio das recordações extraídas do fundo das recordações de quem é catalano e pode experimentar a cidade para além do que se tem materializado na história local.
Catalão pode ser relida para além do concreto, do vidro, do asfalto e das suas riquezas minerais. É possível descortinar muitas outras histórias vividas e partilhadas por sujeitos anônimos que retroalimentaram as fendas do progresso trincando a dureza do cimento dos enredos citadinos recontados nos livros e pela história imposta à população como verdade absoluta.
Esses caminhos sinuosos em que muitos atores percorreram ou percorrem ao reviver por meio das lembranças o passado, permitem-nos reconstruir nossas próprias histórias que ressurgem das profundezas do esquecimento quando somos instigados a revivar nossas memórias e presentificar o passado. Nossas lembranças se refazem em flashbacks onde acontecimentos, cenas ou episódios se atualizam retirados em cenas só vistas, individualmente, por quem relembra.
Fui instigado por Maysa Abrão a reviver o meu passado e a recompor os fragmentos de minha memória afetiva trazendo à tona o meu olhar sobre o meu pai. Percebi que tal exercício não era tarefa fácil, pois ao falar dele estaria falando de mim, das minhas impressões, selecionado fragmentos do passado, elegendo histórias e deixando adormecidas outras tantas. A arte de contar histórias não é algo tão simples, mesmo tendo como profissão a de historiador. Reviver lembranças é reviver com sentimentos minha própria história; a de quem já se foi e, ao mesmo tempo, materializar em palavras, num exercício dialógico de falar do outro falando de si mesmo o que está sentindo. O passado vem ancorado ao passado do outro, da cidade e acaba por provocar um mergulho intenso nas suas recordações e sentimentos mais profundos.
Tentarei, a partir daqui, alinhavar minhas recordações construindo um sentido narrativo que permita entrever pelos vãos das recordações pessoais realizando um exercício de volta ao passado, pois ao falar de meu pai realimento a minha própria história e a relação com Catalão.
Mohamad Ibrahim Katrib ou simplesmente “Chico Batata”, libanês nascido em 1925, aportou no Brasil no inicio dos anos de 1960, fugindo das guerras que assolavam seu país. A decisão de deixar sua mãe e seus irmãos não foi tarefa fácil como ele sempre nos falava, mas ao tomar tal decisão, a via como a única forma de progredir e depois voltar para ajudar sua família, sonho que não conseguiu realizar em virtude das intempéries da vida.
Ao aportar em Santos, como outras dezenas de imigrantes, seu maior desafio foi o da língua, o de se comunicar. Mas não falar português inicialmente não foi impeditivo de prosseguir com seus sonhos… Esforçou-se, aprendeu as primeiras palavras e seguiu em busca de seus sonhos. Após permanecer por alguns meses em São Paulo trabalhando para sobreviver conseguiu dinheiro e resolveu partir rumo ao interior do país, para isso passou a exercer a função de mascate.
O jovem mascate chega à Catalão em meados de 1961, guiado pelas linhas do trem e impulsionado pela curiosidade de conhecer a cidade e sua tradicional festa do Rosário. Ele se encanta pelo comércio da festa e após realizar boas vendas resolve se fixar na cidade abrindo um pequeno comércio de “roupas feitas” na avenida 20 de Agosto. Foi ali que conheceu uma jovem chamada Iraci que procurou o seu comércio para comprar alguns aviamentos. Foi paixão a primeira vista, nas só depois de um ano voltaram a se esbarrar e foi justamente na festa do Rosário do ano seguinte que seus olhares se cruzaram novamente e, a partir dali, namoraram, casaram constituíram família e compartilharam suas vidas. Desse encontro tiveram três filhos; Haley, Aminia (in memoriam) e Cairo; seis netos: Stefânea, Roger, Nicollas, Michel, Mohamad e Thays.
Após casar-se mudaram para Goiânia e, posteriormente para Goiatuba, cidade em que Mahamad foi apelidado de Francisco pela dificuldade de pronuncia de seu nome pelos conhecidos e por se estabelecer na cidade abrindo um comércio de venda de batatas, foi apelidado de Chico Batata. Mesmo prosperando longe de Catalão seu sonho era sempre voltar a terra que o acolheu. Anos mais tarde, volta a cidade montando na também avenida 20 de Agosto, próximo ao extinto Colégio Anchieta, o bar e armazém “Alô Batata” funcionando ali por mais de vinte anos.
Nos anos de 1980 com o fruto do seu trabalho e de sua esposa constroem um sobrado no Bairro São João, próximo a Santa Casa de Misericórdia onde continuam com a atividade comercial e também passando a vender nas feiras livres de Catalão e região frutas e verduras, profissão que exerceu até sua morte em 2003.
Chico Batata sempre foi um defensor da cidade de Catalão e, com seu jeito simples e brincalhão contagiava a todos. Era bem popular, pois vendia suas frutas em pontos centrais da cidade. Quem não se lembra das melancias fatiadas, dos pacotes de laranjas expostos nas ruas centrais da cidade? Quem não se lembra das barracas de frutas na festa do Rosário com uma enorme mesa colorida pelas fatias de melancia? Ou da banca de verduras nas feiras livres da cidade e região? Bom, Chico Batata vivia a cidade e acompanhava seu crescimento já que trabalho foi seu lema e o que moveu a sua vida. Tanto é que esse reconhecimento se oficializou no ano de 2001, quando foi agraciado com o título de “cidadão catalano” pela Câmara Municipal, por meio de um projeto do então vereador Jamil Barbosa. Tal título muito o orgulhava, pois se sentia filho desta terra, mesmo quando a saudade dos parentes distantes falava mais alto.
Meu pai seguia alguns rituais cotidianos que me vem nas lembranças, dentre eles o de sempre levantar pela manhã, abrir a porta da sala e fazer suas orações na sua língua materna. Aos domingos, quando chegávamos da feira, antes do almoço ser servido, pegava seu gravador inseria fitas cassetes com gravações de seus parentes que, segundo ele relatavam a saudade de não tê-lo por perto ou ouvia músicas tradicionais do Líbano e seus sentimentos se transpunham na forma de lágrimas. Esse ato de reviver o passado era sempre um processo doloroso de perdas e saudades, mas também, de manter sua memória afetiva atualizada.
Sua simplicidade era outra marca identitária. Sempre brincalhão divertia as pessoas com a sua forma de ser, com seu linguajar, com os causos que gostava de narrar sempre destacando episódios de suas andanças seja no Líbano ou no Brasil.
Religiosamente todos os natais não faltava o tradicional carneiro assado. Aos domingos o quibe cru, o mafufo… No seu aniversário, dia 23 de agosto, encomendava nas padarias da cidade dois mil pães e saíamos a distribuir nos bairros mais carentes da cidade. Mesmo doente e bem debilitado, não parou de trabalhar, pois para ele essa era a seiva que o alimentava. Não sabia ler nem escrever, mas isso não foi impeditivo para que se acomodasse ou se limitasse a não se aventurar pelo trabalho no comércio. Era um exímio negociador, fazia todos os cálculos matemáticos “de cabeça” como falava.
Divergências de opiniões também existiam entre nós, fruto das visões de mundo e sonhos que cada um possuía, reflexo das gerações vividas. Porém, aprendi muito com meu pai e minha mãe, pois desde cedo eles nos ensinaram que conquistaríamos nossos sonhos por meio do trabalho e dos estudos. Sendo este último, a nossa maior herança. Acho que levei isso ao pé da letra e lutei por meus objetivos e não me arrependo, pois o que sou e os espaços que já conquistei são reflexos dos ensinamentos familiares.
Somos fruto de cada aprendizado partilhado, de cada erro cometido, de cada história vivida, de cada perda ou conquista, mas só somos o que somos porque somos reflexo do que vivemos. Meu pai me proporcionou experimentar a vida, as diversas formas de trabalho, de me comunicar com o mundo por meio do contato com as pessoas nas feiras livres ou vendendo frutas nas ruas da cidade e me orgulho disso. Foi vivendo tudo isso que percebi que poderia ir além, subindo com meu esforço cada degrau que a vida me presenteava. Hoje, sou realizado pela profissão que exerço pelo reconhecimento acadêmico que possuo, mas nunca esqueço de tudo que vivi e compartilhei que mesmo não estando registrado nas linhas que tecem a história da cidade; consigo desatar os nós da memória, reviver o passado e reavaliar o presente… Obrigado pelo desafio!
Por: Cairo Mohamad Ibrahim Katrib
Doutor em História, professor Universitário
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